terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O PAGODE OU A DERROTA DAS MULHERES

Parodiando um livro intitulado "A ópera ou a derrota das mulheres", de Catherine Clément, 1993, editado pela Rocco, passeio pelas letras das composições de pagode baiano para encontrar os ecos de uma cultura ainda relutante quanto a liberdade sexual da mulher. Se achamos que os anos 60 enterraram os fantasmas de um patriarcado tenebroso, o novo milênio nos oferece textos exemplares que nos mostram a sexualidade feminina como alvo de controle do discurso do homem, pois aparece como um território desejado e, portanto, a ser satisfeito; de tensão, que situa o sujeito que deseja, paradoxalmente, na condição de objeto, pois necessita, depende do outro para que seu desejo se realize, o que significa transferir poderes para o outro. Essa situação de carência, no sentido filosófico do termo, do homem projeta-se nas práticas sociais com violência, ecoando gestos misóginos.
Vejamos alguns versos dos grupos de pagode da Bahia:

"
E toda noite ela quer fazer esquema,
pega um pega geral pra ela não é problema, no
carro, no cinema, ou no meio do mato estilo
cachorra ela fica de quatro."
(Ela é dog, Oz Bambaz)

Pela visão masculina, a mulher para não ser rotulada e depreciada de "cachorra", isto é, prostituta, ela deve obedecer uma frequencia (qual seria?) de saídas e ter apenas um parceiro. Longe de me deter em um comparativismo, do tipo o homem pode fazer tudo isso sem ser depreciado, ao contrário, passaria uma imagem positiva de virilidade, a mulher teria ainda que limitar-se quanto ao "estilo". Esse discurso, digno de textos vitorianos, período da história da sociedade inglesa do século XVIII/XIX, quando a moral sexual era sustentada através da repressão sexual, sobretudo das mulheres, parece confirmar o que Susana Faludi, nos anos 80, chamou de reação ao feminismo. Tal observância do comportamento feminino perpassa pelos três aspectos mencionados - freqüência, quantidade e performance - categorizando a mulher pelo comportamento sexual que tem. O que está sendo dito no silêncio é que uma jovem (considerando o público que escuta majoritariamente essas composições) para não ser vista como objeto sexual, uma prostituta, precisa atentar para esses três aspectos citados. Também não quero dizer que o comportamento dessas mulheres aqui representadas expressam a sua liberdade, já que elas reproduzem muitas vezes o que a sociedade espera delas.
Paradoxalmente, a masculinidade é sustentada pela mulher que é depreciada na música. Portanto, ao mesmo em que a "mulher fatal" é desejada e ostensivamente representada em diversos meios pelo homem, para sustentar uma masculinidade forjada (que ele sequer percebe), ela é depreciada por também representar aquilo que não pode ser pertencido e que também expõe fragilidade e limitações humanas sexuais. Por isso essa mulher aparece desejada e desqualificada ao mesmo tempo. Essa situação torna a vivência da mulher mais difícil porque ora ela é desejada, ora, pelos mesmos motivos, ela é execrada.

Vejamos outros versos:

"
Diana, menina, danada, rosada, rodada, tarada;
Saiu pra que;
Eu vou varrer, eu vou varrer;
Eu vou varrer, eu vou varrer."
(Dyana quer varrer, Oz Bambaz)

Esse trecho me chamou a atenção por conta do sentido de controle da mulher pelo gesto de SAIR. O espaço público ainda seria hostil às mulheres? "Saiu para quê?" não estaria questionando a mulher no espaço público e vinculando essa saída a uma experiência sexual? Esse pensamento está na base ideológoca do patriarcado (que alguns e algumas insistem em dizer que não existe mais) porque consiste em aprisionar a mulher no espaço doméstico. A mística feminina (Betty Friedan), que impunha um problema que não tinha nome para as mulheres de classe média norte-americana nos anos 60, combina-se a elementos mais contemporâneos e, num "remake", inscreve, no século XXI, no Brasil (e muito provavelmente em outros países também), mulheres de diferentes classes sociais, a um programa de reestruturação que inclui, novamente, a intervenção no comportamento feminino. O pagode baiano tem sido um espetáculo de ressignificações comportamentais de gênero para as mulheres que, sem outras alternativas que as valorizem, entregam-se à sorte ou ao pagode. Não existe para a mulher uma outra forma de se inserir que não seja pelo seu corpo, modelado, desejado, velado, destroçado, mas sempre corpo fetichizado pelo olhar masculino.
AINDA A MÍSTICA FEMININA
Inicio esse blogue fazendo uma homenagem póstuma a Betty Friedan, escritora norte-americana, feminista, que faleceu no dia 04 de fevereiro de 2006, portanto há quase três anos. Felizmente a morte não leva junto o pensamento e isso faz com que algumas pessoas entendam que o real sentido de imortalidade consiste nas idéias que são deixadas para a posteridade: o nosso legado. Em se tratando de Friedan, o seu maior legado foi nos ter deixado um precioso livro intitulado A Mística Feminina. Apesar de analisar as mulheres casadas da classe média norte-americana, podemos perceber o quanto o livro é atual e o quanto alguns mitologemas de gênero perduram na sociedade em que vivemos, para o infortúnio de mulheres e homens, portanto da humanidade.

Betty Friedan ao identificar os problemas das mulheres daquela geração e classe social chamou-os, de início, de "sem nome" porque não havia um nome para o que as mulheres sentiam e as levavam aos consultórios psicanalíticos. Um dos espaços questionados por Friedan era a mídia. Além dos depoimentos das mulheres, com a devida análise, Friedan questionou o papel da mídia na construção dos mitos de feminilidade - senha de acesso e de derrota para a mulher. De acesso porque sem eles as mulheres eram excluídas, não eram vistas como mulheres, de derrota porque ao aceitá-los, estava destinando para si mesma os limites impostos ao sexo.

As peças publicitárias e as revistas, sobretudo, eram vistas como veículo ideológico que reproduziam um modelo de comportamento feminino a ser aceito consensualmente. Essa discussão também está presente nas reflexões de uma outra escritora norte-americana que analisa a mídia interseccionando com as questões de gênero e mulher - Susan Faludi. Em seu livro intitulado Backlash, publicado nos Estados Unidos nos anos 80, e no Brasil dez anos depois, Faludi, afirma que as mulheres nunca alcançaram a conquista plena, como é alardeado pela mídia. Segundo ela, as mulheres teriam chegado perto, mas não o suficiente para desmontar a estrutura burguesa que tentou sedimentar as desigualdades das relações de gênero, há anos denunciadas pelas feministas de várias gerações e países. Faludi amplia a leitura midiática sobre a mulher, evidenciando um momento de reação nos anos 80, acrescentando leituras sobre filmes.
Betty Friedan, antes de Faludi, havia exposto que as mulheres da sua geração, a de 60, estavam confinadas ao lar, reduzindo seu potencial humano às tarefas da casa: cuidar do marido e dos filhos. A existência da mulher consistia em viver para o outro, definindo a sua identidade a partir dos papéis sociais de mãe e esposa, já que enquanto indivíduo-mulher, ela não existia para a sociedade. Faludi, vinte anos depois, mostra pontos de conexões entre os anos 50 e 80, mostrando que nos anos 80 houve uma reação contra a mulher da qual fez/faz parte a mídia."O estranho é que, à medida que a mística feminina se divulgava, negando à mulher profissões ou quaisquer compromissos fora do lar, triplicava o número de mulheres trabalhando em diferentes empregos. E' verdade que duas em três continuavam a ser donas de casa. Mas por que, no momento em que as portas do mundo se abriam finalmente para todas as mulheres, a mística negaria os sonhos femininos de um século?" (Friedan)
(Esse artigo foi publicado em http://midiaegenero.blogspot.com/, de minha autoria, mas que foi excluído por razões que desconheço)