domingo, 14 de novembro de 2010

REVISTAS "FEMININAS"

Há muito tempo venho acompanhando as revistas expostas nas bancas de revista e as suas capas, atenta aos discursos difundidos pelos meios de comunicação, através das combinações de diversas linguagens. Seguindo as minhas inquietações, me deparei com um conjunto de revistas em uma banca localizada na rodoviária de Salvador, que custa entre R$1,99 a R$3,90 direcionada a um público feminino de menor poder aquisitivo, muito embora possa ser lido por qualquer pessoa.

Interessei-me imediatamente pelos textos exibidos neste espaço da revista, a fachada, o chamariz, observando la ênfase temática, a sutileza das ambigüidades e a ideologia ancorada nas imagens e palavras. A violência chega rapidamente aos olhos no arcabouço da linguagem e nos assuntos escolhidos para alcançar um público cada vez mais atado às representações de feminilidade, afinando as exigências de uma ordem social burguesa às necessidades materiais e espirituais da classe social economicamente pobre. Para a burguesia, a família nuclear aparece como pedra angular desta ordem, por isso intocável. Do século XVIII até hoje ela permanece, embora com outras configurações. Remetendo às palavras de Eni Orlandi, quando menciona a coexistência de traços permanentes e transformados nos discursos, penso que, em se tratando de organização social, a ordem familiar burguesa aparece como o traço permanente na estrutura da sociedade ocidental, apesar das alterações que ela mesma abriga, sem com isso ameaçar a sua existência. A relação entre a mulher e família, assim como a mulher e sexo, permeia os discursos do ocidente, em diferentes áreas: científicas, literárias, artísticas, midiáticas, dentre outras.


A guisa de reflexão, tratarei da capa da Revista Super Prática - sua vida muito mais prática - , ano I, nº 01, que traz do lado direito a atriz Susana Vieira com o seguinte texto: "A Maria do Carmo de Senhora do destino: cada vez mais linda" e mais "Como ficar bonita: a estrela Susana Vieira dá a receita de beleza". Logo mais abaixo, a promoção estampa: "leve 3 pague 1: você nunca pagou tão pouco por tanto conteúdo!" E mais embaixo: "Revista + Encarte de sexo + cadernão de receitas". Ao lado esquerdo, na parte de cima, um texto dentro de uma seta garante: "acabe com suas dúvidas sobre sexo - revista brinde grátis". Seguindo abaixo, a leitora encontra as seguintes orientações: "Visual nota 10, rosto sem rugas, roupas da moda, cortes de cabelo", continuando em direção ao pé da página, a revista indica os seguintes rumos: "sua casa em ordem: troque o gás você mesma, economiza água e energia, guia de faxina, acabe com as baratas". Por último, com a seguinte chamada "E MAIS", foram inscritos cuidados e macetes: "elimine manchas, cuide de sua segurança, como dar nó em gravatas, monte seu próprio colar".


Este caldeirão de textos, somados às cores e imagens, onde predominam o vermelho, o amarelo e azul, serviu para diversas indagações, principalmente uma autocrítica, da pouca intervenção, ou talvez da pouca visibilidade, das ações feministas do ponto de vista da crítica da cultura, com mais ênfase. Talvez nos falte a veia aguerrida das primeiras mulheres que tiveram de rasgar caminhos com palavras e gestos que punham em questão os alicerces do patriarcado. Talvez nos falte efetivamente uma posição mais pungente no que diz respeito aos avolumados discursos sobre os lugares das mulheres, sobretudo da classe pobre. Por outro lado, ao mesmo tempo em que verificamos enunciações a respeito dos avanços da ciência, da tecnologia, das relações profissionais, percebemos que, no "universo paralelo" das experiências das mulheres, tais avanços não chegam ou até mesmo dizem ter chegado, mas que na prática não verificamos. Para as mulheres de classe baixa resta apenas, pelo visto, a sustentação de uma ordem que necessita de um contingente esmerado em cuidados da casa, nas artes do sexo e da culinária. Curiosamente, em um momento em que se fala tanto de uma mudança nos papéis de homens e mulheres, questiono se esta situação efetivamente existe ou se não é mais uma artimanha que envolve interesses, seduzindo as mulheres para uma confusão identitária, a fim de que mulheres tenham uma imagem de si mais liberta, mais emancipada, mais realizada, quando, possivelmente, toda a suposta mudança aparente está condicionada a permanência da base de sustentação da ordem social burguesa.


Na revista, o apelo a gratuidade, a um custo de R$3,90, confunde-se com outros chamamentos, como praticidade, efeito, resultados, satisfação, felicidade, a um custo quase zero (!?). É visível e ostensiva associação tendenciosa da mulher à beleza e à casa. Ser prática, isto é, cumprir todas as tarefas da casa de forma econômica e rápida, no estilo "faça você mesma" e, paradoxalmente, permanecer bela, são convites constantes nas revistas "femininas". Desde o século XIX, ou para ser mais precisa, desde a ascensão da burguesia, assuntos como beleza, moda, cuidados com a casa (as crianças não apareceram desta vez), passeiam pela capa de revistas, atendendo aos valores impressos pelos discursos da burguesia.

Além das chamadas já expostas, a revista traz um encarte cujo título é: "Sexo: 69 pergunta e respostas - acabe com todas as suas dúvidas". A revista concentra idéias de um poder feminino alicerçado a uma satisfação masculina, mas forjada como feminina. Em um dos títulos do encarte sobre sexo há o seguinte enunciado: "Experimente: você pode ter prazer com essa fantasia masculina", o enunciado sugere que nem sempre agradar o homem pode ser confortável para a mulher, mas que ela pode se esforçar para transformar uma situação dolorosa em algo agradável para ela, mesmo sabendo que não é. O que isso significa? Mais uma vez a revista feminina centra-se na vontade masculina.

Conforme a revista, basta ser bela, ser uma boa amante e saber cozinhar para a garantir a felicidade, mas de quem?

7 comentários:

  1. Quando o assunto são as revistas para adolescentes do sexo feminino, a coisa não muda. Tudo gira em torno de programar a adolescente para, no futuro, ser uma mulher "independente", mas devidamente "casada, linda e feliz", é claro...

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  2. Exato. Acho que devemos já sair dos muros das universidades, com as pesquisas que ficam nas bibliotecas, e entrar nas escolas, espaço onde podemos encontrar, de uma forma mais abrangente, este público.
    Obrigada por postar. Seus comentários são sempre pertinentes.

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  3. Oi, Lúcia! No comentário anterior, esqueci de mencionar um trabalho interessante, que analisa o discurso de oito revistas para adolescentes do sexo feminino: "Como se constrói uma mulher: uma análise do discurso nas revistas brasileiras para adolescentes", dissertação de Luciane Cristina Eneas Lira. O trabalho está disponível na Net. Recomendo aos leitores do blog. Abraços!

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  4. Ola, adorei o post e tenho citado em palestras...inclusive adc seu blog ao meu para acompanhar as novidades...gostei da forma q escreve e que nos levar a refletir em questões simples mas que acabam passando despercebido no dia a dia. Agradeço pela coragem de escrever o q pensa e conseguir dividir conosco essa linha de raciocinio. um grande abraço e espero citar mais post em minhas palestras...continue nos presenteando com essas pérolas!!!

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  5. Olá, Regina
    Obrigada por suas palavras incentivadoras. A recepção de vocês me motivam a escrever mais. Esse diálogo é muito importante e espero estar contribuindo de alguma forma.
    Abraço
    Lúcia

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