sábado, 31 de dezembro de 2011

Lady Delish

A indústria da cultura pop é um campo profícuo para as analistas críticas do discurso feminista porque produzem textos que contribuem enormemente para organização do tecido social com base nas relações de gênero. Por meio de referências intergenéricas, linguagens variadas, estrutura muitas vezes pouco linear, mais sugestivas do que explícitas, o texto audiovisual vai evocando e significando corpos, atitudes, ideologias. Os vídeosclipes são muito ricos neste sentido.

Neste blog, postei uma reflexão sobre o videoclipe de Beyoncé, Run The World (girls), material repleto de simbologias e imagens que sugerem o confronto de gênero e de sexo: de um lado as mulheres e do outro os homens, cada um marcando o seu território dentro de uma prática social que emana poder, disputa, projeção: o show business ou a indústria do entretenimento. Acontece que para as feministas da segunda onda, aquelas que foram formadas pelo pensamento da modernidade, não é fácil compreender o movimento das jovens envolvidas no show business, corporificando representações que parecem contrariar as bandeiras feministas. Nestes espaços, elas interagem com diferentes significações em torno da representação semiótico-performativa do que se entende como mulher nos discursos das letras, na musicalidade, na coreografia e na encenação. Essas jovens se tornam ícones de uma geração: Beyoncé, Pink, Amy Winehouse, Adele, Rhianna, Shakira, entre outras. Que mulher está sendo apresentada para o público consumir para ele se identificar? Quem é este público consumidor? Quais os signos em rotação, para citar Eco, que explodem em um videoclipe com menos de 5 minutos ou um megashow de 2 horas com palcos gigantescos, músicos especializados, onde a cantora canta, dança, pula, faz acrobacias, em meio a profusões de cores, ritmos e palavras? Vale destacar que a experiência visual de quem assiste a estes shows ao vivo é diferente de quem usa o DVD e assiste em casa. Neste aspecto, as câmeras tem um grande papel.

O videoclipe de Beyoncé mostra que as mulheres competem arduamente, com firmeza e determinação na indústria de entretenimento com os homens, por isso a imagem no videoclipe de territórios demarcados. Para isso, elas lançarão mão de estratégias diversas, incluindo usar o fetiche para regular o fetichista. O corpo é extremamente espetacularizado, exageradamente adornado, para mostrar claramente que elas utilizarão, com a mesma intensidade com que são reguladas, o feitiço contra o feiticeiro.

Outra representante da música pop, com influências do rock, é P!nk ou Pink, com proposta de alcançar também o público jovem com performances sofisticadas, sensuais, altamente estilizada.


A música U + Ur Hand, de Pink, uma das mais executadas, parece trazer uma história baseada em fatos reais. A compositora e cantora resolveu retextualizar, como resposta a um fato ocorrido com ela mesma, o tema do assédio, o que certamente contribui para a adesão de várias fãs que já se viram na mesma situação: trata-se de uma jovem assediada, mas que rejeita a investida, por não querer servir de diversão para o rapaz, o que fica explícito no título da música U + Ur Hand (you and your hand), uma expressão idiomática para masturbação. A letra sugere ainda que o assédio público pode ser uma simples disputa entre machos, uma aposta, na qual a mulher participa como objeto de um rito machista:

“In the corner with your boys you bet up five bucks
To get at the girl that just walked in but she thinks you suck
We didn't get all dressed up just for you to see.”

“No canto com seus amigos, você apostou 5 dólares
Para ficar com a garota que acabou de entrar, mas ela te acha um idiota
Nós não nos produzimos só pra você ver.”
Em um videoclipe a música acompanha uma sequência de imagens e temos que levá-la em consideração. Nesta canção, a cantora Pink se transforma em várias mulheres, são seis ao todo, chamada Lady Delish ou Dona Delícia (delish é uma expressão idiomática para delicious). A experiência de Lady Delish ocorre tanto no livro folheado, no plano da ficção, quanto na realidade quando a leitora passa pela mesma situação, rompendo com a barreira entre ficção e realidade para mostrar a tênue linha que separa estas esferas. Como as bonecas russas, babooshkas, dentro do videoclipe existe um outro texto cujas letras escapam do livro e se diluem, sinalizando o processo de interação entre leitura e texto:

Primeiro capítulo: a garagem de Pancho
Lady Delish adorava carros. Carros foram sempre mais confiáveis do que os homens que tratavam deles.
Segundo capítulo: O Buraco do Inferno
Após o trabalho, seu treinador, Carlos, queria mantê-la [treinando]. Ela pulou e socou até sua raiva ter se esgotado. Com longas horas de treinamento, sua vida fascinante tinha se esvaído.
Terceiro capítulo: Sopro do vento
Lady Delish, em seguida, migrou para o boteco ao escopo da vida selvagem. Muito músculo e pouco cérebro fez esses caras muito estropiados.
Quarto capítulo: Jardim do chá
Lady Delish procurou por um homem que pudesse compartilhar seus interesses.
* Lendo um livro chamado "Um sugestivo inquérito no mistério hermético" *
Pelo menos, um livro com substância não era difícil ...
Quinto capítulo: O Mundo do Governador
Numa elegante noite, Laady Delish misturou-se com a elite. Sua percepção deles logo foi maculada.
Sexto capítulo: Em casa sozinha novamente
Ela olhou, ela tolerou, ela conciliou, mas Lady Delish ainda estava sozinha em casa. O que uma Lady vai fazer? Ela decide contactar uma antiga paixão com um presente (na caixa o endereço cujo destinatário é "Papai Dick". Ela sela a embalagem com um beijo deixando a marca do batom)

É uma canção que agrada jovens da área urbana que passam por experiência como a dificuldade de estarem no espaço público sem serem assediadas ou em um espaço historicamente masculino sem serem molestadas e o quanto reagir a tudo isso faz com que as jovens se tornem solitárias, sem uma boa companhia, porque quase todos os rapazes são tolos. Esta solidão parece ser uma realidade para as mulheres que já não aceitam qualquer pessoa ao seu lado e que têm a sensação de que estão fora do lugar. Porém a solidão, embora não quista, já não as apavora tanto, é uma opção. Elas preferem ficar sozinhas do que acompanhadas por um homem que não as respeitam e as tratam como um objeto de conquista, resultado de uma aposta, de uma competição. Neste aspecto, é que reconheço na música ecos de uma mensagem feminista, já que a mulher rejeita submeter-se ao código, embora faça uso dele, e prefira estar só. Esta ambiguidade embaraçosa está na pauta de discussão dos estudos pós-feministas, o que me faz lembrar de um artigo de Angela McRobbie no qual ela cita Judith Butler e o conceito de 'duplo enredamento':
"Isto implica a co-existência de valores neo-conservadores em relação a gênero, sexualidade e vida familiar (por exemplo, o suporte de George Bush à campanha para encorajar a castidade entre o público jovem e, em março de 2004, declarar que a civilização depende do casamento tradicional) com processos de liberação em relação à escolha e à diversidade nas relações domésticas, sexuais e de parentesco (por exemplo, casais homossexuais agora estão aptos a adotar, criar ou ter seus próprios filhos e, ao menos no Reino Unido, tendo plenos direitos a ‘parcerias civis’). (McRobbie, 2066, 59-69)

Este início de século aparece muito violento para as mulheres que precisam aprender a conviver com a solidão para não sucumbirem a uma subserviência de gênero que só as desqualificam. Se é complexificação ou backlash, penso que seja uma complexificação em razão do backlash, uma tentativa de golpear o processo de emancipação, mas que as mulheres têm resistido, negociando muitas vezes com os elementos do próprio código. Esta estratégia gera ambiguidade, contradições, que rompem com um pensamento linear, de causa e efeito, que deixa nas bordas outros nexos. O resultado disso ainda não dá para visualizar, pelo menos não vejo, porque trata-se da recepção de uma geração que cresce imersa em uma bolha de apelos mercadológicos, ideológicos, espetaculares.

Estou ainda pensando sobre tudo isso.


Referência:
In: CURRAN, James; MORLEY, David. Media and Cultural Theory. London/New York: Routlege, 2006, p. 59-69. Tradução: Márcia Rejane Messa.