Uma certa propaganda do cereal Mucilon me chamou a atenção. Trazia uma mulher de mais ou menos 30 anos, de classe média que chega da rua reunindo os brinquedos do filho espalhados pelo chão. Tal atitude do filho se deve ao efeito do cereal. O que me chamou a atenção, muito mais do que as palavras proferidas pela personagem, foi a ausência da empregada doméstica ou babá, presença constante nas famílias de classe média. Desconheço uma família, hoje, dessa classe, que não se sustente com a presença de uma empregada doméstica e/ou babá. Diria que, devido a estrutura social de classe e a herança escravocrata que herdamos, é impossível que uma família hoje se mantenha sem a presença da empregada e/ou babá. Certamente, se não fosse isso, as famílias nucleares já teriam sido extintas, a menos que uma revolução nas relações de gênero acontecesse e uma profunda mudança nas relações de classe e raça se efetivasse. Essas relações aparecem intrincadas em nossa cultura e o patriarcado é a resposta. Essas relações existem porque o patriarcado se alimenta dela e quem sustenta esse modelo é cúmplice e mantenedor dessa arcaica estrutura.
Mas a que se deve a ausência da empregada? Por que o interdito? O que se passou na mente de quem sugeriu a omissão, a que classe social pertence ou está a serviço? Que mal estar poderia haver em mostrar uma babá ou empregada doméstica na propaganda? O que não deve ser registrado, mostrado para a telespectadora? Que efeito poderia causar, caso fosse mostrado uma situação mais próxima da realidade?
Os analistas do discurso costumam dizer que mais importante do que é dito é aquilo que não é dito. De fato, o discurso possui, pelo menos, duas dimensões - presença ( o que é escrito ou falado, materializado na língua) e ausência ( o que não foi escrito ou falado, mas está presente no discurso, embora não materializado). Por exemplo, quando digo "eu prefiro salgados", estou dizendo também que não prefiro doces. Na propaganda, a ausência da empregada ou babá disse mais do que a presença da mãe porque na nossa cultura, na realidade em que vivemos, as relações de gênero tem se mantido graças a presença da empregada doméstica. Sem esta figura, uma dona de casa não chegaria tão "fresca" e alegre em casa, catando os brinquedos pela casa depois de um dia extenuante de trabalho.
O texto publicitário oferece alguns indícios no sentido de veicular a idéia de dupla jornada da mulher, mesmo que não esteja muito claro, já que a personagem entra em cena apenas fechando/batendo uma porta, sugerindo que ela estava fora de casa e que ao chegar naquele momento, se deparou com os brinquedos espalhados pela casa. Na realidade, a dupla jornada da mulher de classe média sempre foi atenuada pela presença das empregadas domésticas e babás. A mulher pobre, sim, realiza a, dupla, tripla, jornada, muito embora receba apoio de familiares, vizinhos, raras vezes creches, quando necessita trabalhar.
A cena só caberia em uma cultura ou sociedade não escravocrata, mas em se tratando de Brasil e, mais ainda de Bahia, essa realidade "moderna", da mulher que assume a casa, parece soar no mínimo estranho. A cena não mostra se a personagem realmente estava no trabalho, embora apresente ela em movimento, chegando de algum lugar fora da casa, de qualquer sorte, estava em outro espaço. Não é comum nas famílias de classe média a ausência da empregada ou babá, ao contrário são presenças significativas, chegando a algumas casas possuírem as duas ou até mais.
Essa omissão parece causar um desconforto em quem quis veicular a propaganda, não querendo associar relações tão arcaicas, patriarcais e escravocratas, a um modelo de sociedade moderna (ou pós-moderna?!). O que vemos então? Como acontecia no século XIX, o esforço em colocar o Brasil no compasso da modernidade, através de um modelo de sociedade urbana, que incluía não apenas uma reforma na cidade, mas de comportamento, consistia em eliminar a escravidão, pelo menos oficialmente, por lei, e discursivamente, por conveniência a um projeto de sociedade moderna. Ora a presença da escravidão era impedimento para uma sociedade que se pretendia republicana e moderna, como propagavam os atores da revolução burguesa. Contudo as idéias da revolução não mudaram o alicerce nem da sociedade de origem, e muito menos daquelas que as adotaram. O Estado oficializou a mudança, primeiro com a abolição da escravatura, por causa de razões políticas e econômicas, em seguida com a instauração da República. Contudo, o cotidiano dizia outra coisa, as tensões e os interesse de classe tentavam sustentar os privilégios, tentando ajustar-se aos novos ventos, mas sem alterar drasticamente o status social de cada um. Ninguém tinha interesse de abrir mão dos privilégios, mas sabiam que as mudanças eram inevitáveis. Mesmo assim, tentaram se manter nos lugares de poder, ajustando-se aos novos ideais.
O que vemos na propaganda no século XXI é a mesma estratégia que há séculos vigora: excluir a presença de qualquer resquício que ponha em questão a imagem de um país moderno. Portanto, a propaganda não poderia expor a presença da empregada doméstica porque seria o mesmo que admitir a presença de uma escravidão, ainda que disfarçada.
Do ponto de vista feminista, existe uma outra questão: a mulher de classe média, para manter os privilégios de classe, acaba sustentando um traço da ideologia patriarcal, ao aceitar que o homem não divida a responsabilidade da casa com ela e a saída encontrada por ambos está na empregada doméstica. Nesse sentido, os interesses de classe sobrepõe-se a qualquer outro interesse, inclusive o de gênero. A cumplicidade da mulher, esposa, em relação ao homem, marido, se dá para manutenção do status social e mina qualquer outro vínculo ideológico possível.
A presença da escravidão nas famílias, na figura da empregada doméstica, em sua ampla maioria negras, sustenta as históricas relações patriarcais escravocratas porque em nossa sociedade a opressão e a subordinação da mulher não acontece apenas em relação ao homem, mas a depender, também por outra mulher, de classe diferente.
Se considerarmos a ausência da empregada ou da babá, será que a mulher de classe média, esposa e mãe, conseguiria desempenhar essa dupla ou tripla jornada? Das duas uma: ou ela chegaria a uma completa estafa (acompanhada ou não de morte física) ou o marido teria que ajudar em casa nas tarefas domésticas. Como a mulher de classe média não quer morrer, mas também não quer perder o marido, resolve ajustar-se ao velho código e manter a estrutura patriarcal escravocrata.
A propaganda é exemplar nisso porque ela não representa o que de fato existe nas relações sociais. Ela cumpre o papel ideológico ao omitir as relações de classe, gênero e raça na sociedade. De classe porque torna invisível a presença da empregada, lugar constitutivo da manutenção de ordem social secular, nas relações sociais no Brasil, sobretudo na Bahia, de onde parte o olhar de quem escreve esse texto. De gênero porque apresenta a sustentação dos papéis sociais - ainda que a mulher venha de fora, é ela quem cuida da arrumação da casa e da alimentação do filho. De raça porque, em se tratando da Bahia, a maioria das empregadas é negra, uma herança da escravidão que se mantém em culturas mais conservadoras, como a Bahia, historicamente fundada nas relações patriarcais e escravocratas.
A propaganda esconde, portanto, através do que não é dito, o lastro patriarcal que sustenta as relações de classe, gênero e raça no Brasil e na Bahia. Apesar de não estar no texto, está dito que o patriarcado ainda vive na forma de opressão da mulher, seja na figura de esposa e mãe, seja na figura da empregada doméstica, enfim que a mulher de classe média não se emancipou e atrela outras mulheres ao seu processo de alienação.
Muito interessante encontrar seu post justamente no momento em que estamos conversando sobre isso no blog Desabafo de Mãe:http://blogdodesabafodemae.blogspot.com/2011/01/sua-filha-o-arruma-cama.html
ResponderExcluirEu não percebi essa propaganda ainda, mas a maioria das mães que conheço que moram fora do Brasil já não vive essa realidade escravocrata. A maioria, no entanto, não trabalha. Vc imagina que seja possível existir uma alternativa?
Muito interessante a omissão das relaçoes de submissao.Homem>Mulher>empregada.
ResponderExcluirIsso significa q ainda ha muito a ser repensado p ser mudado.
Fico boba é q somos nós q educamos esses homens e mantemos muitas vezes essas ideologias sexistas
Anônimo, acredito que a propaganda não tenha sido produzida na Bahia, mas não sei isso faria diferença, na medida em que nem tudo que é vivido na prática está autorizado a ser veiculado pela mídia. As telenovelas mantêm a empregada doméstica e não são produzidas na Bahia. Na minha opinião, para que houvesse uma realidade diferente, teria de acontecer um movimento de equidade dos gêneros, mas, articulando com raça e classe, porque as feministas sempre embandeiraram uma equidade de gênero, mas relegando as questões de classe e raça.
ResponderExcluirAmanda,
ResponderExcluirAs mães ficam numa situação complicada por conta do papel, do que a sociedade espera dela e é muito difícil escapar de uma construção secular. Por outro lado, ainda tem uma mídia que reforça tudo isso, fortalecendo o imaginário.