segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

UMA QUESTÃO DE DISCURSO: MÍDIA, GÊNERO, AMOR, POLÍTICA...

Se pensarmos no imaginário sedimentado pelos discursos veiculados pela mídia e as artes verificaremos que hegemonicamente a representação de mulheres que aspiram por um grande amor lastreia as narrativas elaboradas e disseminadas através dos vários e diferentes suportes através dos quais a linguagem se materializa. Pensemos nas peças publicitárias, nas telenovelas, nos filmes comerciais, nas letras de música, nas falas cotidianas que atualizam ditos populares eivados de preconceito, enfim, em todas as formas textualizadas que nos chegam aos olhos e nos fazem interagir com o mundo.

Sem dúvida, teremos muitos contrapontos, mas predominam certas normatizações muitas vezes camufladas de valores que consideramos positivos, daí a grande dificuldade de tratarmos criticamente certos enunciados, pois tendemos a apreender o conjunto, a totalidade, o universal. Nesse caso, um trabalho de catar feijão (como não catamos mais…), retirando as impurezas para selecionar os melhores grãos fosse necessário para lembrarmos que no discurso acontece o mesmo.

Devemos analisar o texto, identificando a estratégia e recurso usados para esconder a ideologia, o propósito, em geral hostil ao interlocutor e, por isso, velado para ele. Lembro-me de uma expressão de Noam Chomsky: consentir sem consentir, isto é, como concordar com algo que não concordamos. Podemos fazer isso violentamente e sem violência, de forma sedutora. Esta forma é a mais perniciosa, pois sendo sutil leva a uma adequação das partes, fazendo crer que houve uma vontade mútua, um contrato, mas só aparente. Por isso, digo sempre que uma mulher pode declarar aos quatro ventos que gosta de apanhar, pois eu vou dizer que ela não gosta. Apenas aprendeu a consentir sem consentir. Devemos, a meu ver, valorizar mais os estudos das linguagens, pois elas, de fato, são responsáveis pela adesão das pessoas a qualquer projeto político, pensando a política como um movimento não apenas público, externo, mas como gestos da cotidianidade, onde o público e o privado se inteseccionam.

Em a Arte de Amar, de Ovídio, podemos igualmente aplicar suas orientações à arte de fazer política, pois no amor a política assume a sua forma mais íntima e perversa. Não é à toa que Ovídio insiste na idéia da promessa como estratégia para manter o amante subjugado, pois a promessa alimenta a esperança, que por sua vez mantém o outro preso, pois dele depende para obter o objeto de desejo. As promessas políticas valem-se do mesmo princípio, pois o realizável, o desejado é um devir e é com base na esperança – de mudança, do novo, de melhores condições, de mais emprego, saúde, eucação, segurança – que muitos são embalados ao som de jingles apelativos, imagens persuasivas e uma arquitetura retórica engenhosamente elaborada para uma adesão uniformizada.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

MULHER, MÍDIA E ESPORTE


Não pude deixar de acompanhar as manchetes dos jornais em torno da posse de Patrícia Amorim, nova presidente do Flamengo, o atual campeão brasileiro. As matérias chamavam a atenção para o fato de, depois de 144 anos, o time eleger para presidência uma mulher. Para alcançar esse patamar, Amorim não só representou o Clube na natação, mas foi vice-presidente dos Esportes Olímpicos e atualmente é vereadora. Esporte, mídia e política irmandados.

Apesar do acontecimento parecer um avanço para as mulheres, existem algumas contradições, pois se no futebol, aceita-se, ainda que com 93 votos de diferença, uma presidente mulher, ainda temos problemas para aceitar as mulheres jogando futebol, haja vista  a falta de apoio dos Clubes e de outros setores de criaem Ligas, Campeonatos que sejam tão televisionados quando o futebol masculino. Vamos ver se as mulheres mudam o esporte ou, então, teremos de ver o esporte mudando as mulheres.


domingo, 6 de dezembro de 2009

EXERCÍCIOS DO VER

Estar em uma loja de departamento pode valer um exercício reflexivo.

Hoje estive no Extra supermercado e, passando pelos televisores enormes - Plasma e LCD - que ficam na entrada da loja para nos persuadir a comprar um deles, acabei vendo trechos de um dos shows da cantora Rihanna (foto ao lado), que, por sinal, conhecia apenas das matérias jornalísticas que envolviam as agressões físicas praticadas pelo seu namorado.

A imagem da cantora com o olho roxo circulou exaustivamente pela inernet.

Acontece que apesar do show ser bastante dançante e movimentado não pude deixar de perceber um instante da performance em que um dos dançarinos alisava a perna da cantora e na sequência, de uma forma estilizada, com o corpo quase agachado, estendia o braço para frente e, na forma ritmada da música, flexionava-o para trás, isso tudo alinhado aos seus quadris. O gesto me chamou a atenção não pela novidade em si, aliás não havia nada de novo, o que é necessário inclusive para a mensagem ser imediatamente entendida, mas pela forma que o ato sexual estava sendo coreografado. Não há dúvida de que a semiotização do gesto ao sugerir e simular a penetração por meio de contornos artísticos, tornaram mais digeríveis, em meio a tantas luzes, sons e cores, uma mensagem que poderia sofrer interdito se fosse explicitamente dita.

Estudar as questões de gênero hoje nas linguagens é um exercício que exige do analista uma leitura de diferentes códigos acessados simultaneamente, em geral para ratificar a mensagem. Muita vezes captamos contradições, mas o que vemos normalmente é uma convergência e justaposição de uma mesma mensagem, mas feita por linguagens diferentes. Os shows das artistas são profícuos para uma análise de gênero, pois vendem um produto a ser consumido pelas massas em geral de adolescentes e jovens, mas que não é apenas a música. No caso dos DVDs, as músicas acompanham as coreografias, os figurinos, a organização e composição das bandas, as tomadas e planos da câmera, o enquadramento, compondo um texto complexo  e dinâmico, altamente gendrado, exigindo do analista um exercício difícil, pois ao mesmo tempo em que capta uma cena em especial, tem que analisá-la. Porém, esse exercício só é possível com tempo, com um ritmo diferente do que o da apresentação, levando o analista com isso a perder as cenas que sucedem, dada a velocidade das montagens e do jogo de câmeras.

Os vídeos musicais são valiosos objetos de estudo e merecem mais atenção, pois são produtos a serem consumidos pelas massas, homens e mulheres, e que materializam comportamentos de gênero com a ajuda eficiente das linguagens audiovisuais.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

MOCINHAS E BANDIDAS

Durante os anos 70, a Rede Globo de Televisão mostrava em sua programação uma diversidade de filmes e seriados que eram vistos por qualquer adolescente que tivesse naturalmente um televisor, algo raro se situarmos essa experiência às adolescentes que residiam em bairros populares.

Na programação, seriados de diferentes matizes: futuristas (Robô Gigante, Os Invasores do Espaço, Os Vingadores do Espaço) que traziam temas ligados à ciência e à tecnologia, mas sem muitas inovações do ponto de vista dos papéis sociais de gênero. Os Vingadores do Espaço, por exemplo, era um seriado formado por uma família nuclear de robôs: um homem e uma mulher, em papéis tradicionais, além de um casal de filhos. Pelo visto, o futuro não era o feminismo.

Além do matiz futurista, os seriados se mostravam também míticos (O Planeta dos Macacos, Poderosa Ísis), outros mais urbanos (Mary Tyler Moore, Police Woman, As Panteras, Julia, Jennie é um Gênio, A Feiçeira). Destes urbanos, alguns eram tematicamente policiais: As Panteras, Police Woman e A Mulher Biônica. Esta última por sinal passou boa parte protagonizando o seriado, até que inventaram um affair com o Homem de Seis Milhões de Dólares e seu glamour perdeu-se. Ser coadjuvante pelo visto não atraía muito a audiência.

A questão é que eram muitos seriados. Muitos protagonizados por mulheres. Impossível não nos lembrarmos dos rodopios de Diana Prince para se transformar na Mulher Maravilha. Foi um período formado visivelmente por protagonistas mulheres solteiras, poderosas e felizes: Julia, Poderosa Ísis, Mulher Maravilha, As Panteras, Police Woman, Mary Tyler Moore... Todas elas com poderes paranormais ou normais, atuando em espaços antes reservados ao homem. Apesar dessa inserção em um novo espaço, as mulheres eram descritas como femininas, com olhar masculino - male gaze. É só observarmos os cabelos das atrizes. Mesmo correndo, saltando e se jogando pelo chão, estavam quase sempre bem maquiadas e penteadas. O ator que interpretava Bosley em As Panteras dizia que elas levavam horas só para arrumar os cabelos.

Ao mesmo tempo em que os seriados apresentavam as mulheres protagonizando as narrativas urbanas, em geral exibidas à noite, durante à tarde, na conhecida "Sessão da Tarde", os filmes vistos eram os dos anos 40 ou 50. Melodia Imortal, cuja trilha sonora trazia Noturno de Chopin, Melodia Interrompida, Suspiro de Uma Saudade e filmes de aventura envolvendo piratas e mocinhas destemidas que eventualmente desembainhavam a espada e enfrentavam os bucaneiros nos navios. Lembro-me de Burt Lancaster chamando os piratas de bucaneiros para confronto. Era um enunciado cheiro de heroísmo. Histórias de aventura e de amor, entre lutas, mortes e pouco sangue, com o eterno ocidental clichê do bem que vence o mal.

Um detalhe, quase todas nós sabíamos os nomes dos atores e atrizes e, eventualmente, dos diretores. No Corujão da Madrugada, que literalmente passava após a meia-noite, passavam os filmes que hoje não vemos nem na TV fechada. Primorosos, raros, cult...

Mulheres que voavam, lutavam com espadas, livravam-se das balas com um simples bracelete, manejavam bem as armas de fogo, e que, apesar de todas as peripécias, apaixonavam-se. Lembro-me de uma cena de As Panteras em que Sabrina se apaixonou. Esse episódio foi um dos piores, a meu ver, pois o fato de ter se apaixonado a fez se afastar do grupo. No final, ela se separa do homem e retorna para a equipe. Esferas difíceis de serem conciliadas...

Isso sem falar nas mulheres tidas como más, porém de um charme espetacular. Endora, mãe da Feitiçeira, era a sogra mais encantadora. Feminista, não queria ver sua filha sem seus poderes, o que sempre era um problema para o marido, mas a mãe a persuadia a preservá-los como forma de manter-se no controle. Outra vilã encantadora era a Mulher Gato, arquiinimiga de Batman, diferentemente de Batgirl, a mocinha, coadjuvante sem muita expressividade, a Mulher Gato era insuperável, "roubando" muitas vezes o protagonismo de Batman.



Sem dúvida, os anos 70 foram repletos de mulheres solteiras que protagonizavam seriados. Nunca a televisão desfilou tantas mulheres, em diferentes espaços, atuando de diferentes formas, muito embora esse olhar estivesse sob o controle de uma lente masculina. Mesmo com essas limitações, acredito que pouco ainda se sabe sobre o impacto desses filmes e seriados na vida das mulheres que hoje estão entre 45 e 50 anos.




















segunda-feira, 31 de agosto de 2009

BARBARELAS E NIKITAS DOS TRÓPICOS

Não me elegeram a garota do fantástico, não me subornaram, será que é meu fim” (Cazuza)


Demorei a postar um comentário sobre a professora que foi demitida porque subiu ao palco para executar uma coreografia com base em uma música de pagode.


Sabemos que as coreografias das músicas de pagode ressaltam movimentos do corpo da mulher (não excluindo o masculino, mas a significação é outra, até porque atravessado pela cultura de gênero) sustentados pela forte carga apelativa em torno da sua erotização. O caso em questão tem sido alardeado pela mídia e me interesso em expor aqui alguns pontos que considero oportunos salientar.


A repercussão do fato, através de um vídeo amplamente divulgado no youtube, chama a atenção para a profissão (professora) e o nível que ensina (infantil), muito embora outras meninas estivessem no palco realizando a coreografia. Isso significa que a identificação da profissão dessa mulher foi determinante, já que as outras, que também estavam no palco, passaram despercebidas, ou seja, o problema está muito mais na afronta que a professora fez a um código burguês, portanto, transgressora nesse aspecto, do que na dança em si. Isso porque não se está interessado nas mulheres que erotizam seus corpos, mas em uma mulher específica, vista como representante da classe burguesa, ou ainda que a burguesia elegeu para representá-la. Esse “choque” fica visível quando o imaginário entra em cena. Em um dos vídeos divulgados o título ressalta sentidos que demonstram bem a zona de conflito das culturas: “professora putona”, “professora dança todo enfiado”, etc. Acontece que na sociedade pesou a moral burguesa. Nenhum movimento se pronunciou a respeito, saiu em defesa, ao contrário, silenciaram-se. Somos todos burgueses?


As meninas dançam dessa forma em outros espaços, mas como não são exibidos e não geram maiores repercussões também não geram reações. Independente de ser professora, o que considero importante discutir é a espetacularização do corpo da mulher reduzido a objeto de referência masculina. O fato de não ser professora não minimiza o problema. O pagode baiano tem produzido meninas ávidas por se encaixar em um produto engendrado pela indústria cultural, meninas prontas para o consumo. Mas que consumo? Interesso-me em analisar o modelo de sociedade que sustenta essas práticas sociais, pois desde cedo as meninas são incentivadas a desfilarem seus corpos pelos bairros e shoppings, congelando-se em uma imagem que reproduz os valores de uma sociedade que as ignora em sua humanidade. Meninas pobres ou de origem pobre, na sua maioria negras, são estimuladas a exibirem seus corpos e formatá-los conforme os interesses econômicos de uma classe dominante. Em nossa cidade, a exploração do corpo feminino é visto como gerador de uma cultura de gênero assimétrica por onde perpassam as dimensões de classe e raça, embora considere as práticas sociais uma tessitura complexa, pois nem sempre quem explora é tão Outro assim, às vezes, muitas vezes, é a nossa própria imagem especular.


O que eu gostaria de chamar a atenção é para uma questão muito mais ampla que é a mulher vista como um subproduto de uma indústria de consumo: as barbarelas e nikitas dos trópicos.

domingo, 28 de junho de 2009

A HEGEMONIA HETERONORMATIVA NA MÍDIA

Certa vez, no Shopping Barra, em Salvador, Bahia, uma loja divulgou uma peça publicitária no dia 12 de junho, dia dos namorados, na qual apareciam três casais, sendo um heterossexual, no centro, e dois homossexuais nas extremidades. A peça publicitária buscava contemplar os vários arranjos afetivo-sexuais que mulheres e homens vivenciam na nossa sociedade, muito embora as relações homossexuais não sejam mostradas com tanta veemência.

A loja hoje não funciona mais, mas não associo a esse gesto. Na época, lembro-me de ter perguntado ao vendedor como as pessoas estavam reagindo, pois a ostensividade do que não é normativo previa respostas. Segundo ele, algumas pessoas reagiam positivamente, mas as "senhoras", baluartes da moral e bons costumes, tinham reagido negativamente. Acontece que as imagens não estavam isentas de apelo erótico e isso serviu para escamotear o preconceito homofóbico.

O casal hetero, que estava ao centro, simulavam um beijo terno, focando apenas o rosto de ambos. O casal de homens estava representado de corpo inteiro, nus, corpos musculosos, um de frente para o outro, em um gesto de carinho. Já o casal de mulheres focalizava apenas o rosto, sendo que a expressão facial emitia sinais de gozo (olhos fechados, boca entreaberta, etc).

Lógico que a exposição das cenas eróticas não eram o foco, mas ajudou a ocultar o interdito social da relação afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo. É como se dissessem: "não é o fato de eles estarem em uma propaganda, mas como eles estão". Desse modo, a seleção das imagens, de uma certa forma, proporcionou a estigmatização, a estereotipagem, ao atenuar a erotização no casal hetero e acentuar no casal homo.

Apesar do deslize, a peça publicitária não se repetiu mais. O intedito social continua, pois as empresas não querem vincular o seu produto a uma outra norma de relação afetivo-sexual que não seja a estabelecida. Posar casais homossexuais em peças publicitárias significa um largo passo para uma sociedade alicerçada em valores cristãos e burgueses.

No máximo, modelos andróginos.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

GÊNERO E LETRAS DE MÚSICA DE FORRÓ

Estamos em plena época junina e a Bahia, assim como outros estados do nordeste, respira o São João. Andando pela cidade, verificamos que a paisagem mudou: os outdoors anunciam as atrações musicais das cidades do interior e, na capital, os produtores da indústria cultural criam espaços para aqueles que não vão viajar. Nos Shoppings, os corredores também anunciam as festas programadas nas cidades. As lojas exibem nas vitrines as peças de vestuário em desenhos de xadrez. As casas de show e restaurantes contratam bandas para atrair o público e ampliar as vendas dos produtos da casa. Enfim, imersos nessas práticas linguageiras muitos não se dão conta de como a indústria cultural, ao se apropriar das práticas populares, ressignificam e transformam em consumo os produtos dessa mesma cultura, controlando e regulando os gestos dos membros de uma sociedade. Um dos produtos culturais da nossa cultura é a alegria.

Acontece que no meio dessas linguagens também (e, sobretudo) estão as representações de gênero veiculadas por meio dos enunciados das peças publicitárias, das músicas, do vestuário, das performances de palco dos artistas, na performance do público, enfim, através das várias e diferentes materializações discursivas que engendram a ideologia de gênero, construindo relações assimétricas entre homens e mulheres.
Se observarmos e compararmos as letras de música, estilo pé-de-serra e eletrônico, veremos que há aparentemente uma mudança nas representações de gênero. O forró pé-de-serra trata da assimetria de gênero desempoderando o homem, mas apontando para uma saída, portanto um empoderamento. Em geral, a mulher o abandonou, mas como o homem é o sujeito, procura encontrar o caminho para a superação. Assim, o eu do enunciado da música busca se reconstituir mostrando-se sofredor, enquanto a mulher é vista como ardilosa, pérfida, alguém que não soube dar valor a ele.

Já o forró eletrônico apresenta uma outra relação de gênero onde o homem exerce completo controle sobre a mulher. Ele age, nomeia e toda a atitude atende aos seus propósitos, numa clara tentativa de reforçar a representação de masculinidade pautada no poder do homem sobre a mulher, colocando-a no duplo espaço de ação historicamente conhecido e questionado pelas feministas (regressão?): a rua e a casa. Vejamos um exemplo disso:

TEXTO 1(Letra de música estilo forró pé-de-serra. O discurso do homem desempoderado é retomar o poder e ele o faz buscando construir uma imagem positiva de si e negativa da mulher por quem desenvolve uma afeição que o subordina a ela)

TARECO E MARIOLA (Petrúcio Amorim)
Eu não preciso de você
O mundo é grande e o destino me espera
Não é você quem vai me dar na primavera
As flores lindas que eu sonhei no meu verão
Eu não preciso de você
Já fiz de tudo pra mudar meu endereço
Já revirei a minha vida pelo avesso
Juro por Deus não encontrei você mais não
Cartas na mesa
O jogador conhece o jogo pela regra
Não sabes tu eu já tirei leite de pedra
Só pra te ver sorrir pra mim não chorar
Você foi longe
Me machucando provocou a minha ira
Só que eu nasci entre o velame e a macambira
Quem é você pra derramar meu mungunzá
Eu me criei
Ouvindo o toque do martelo na poeira
Ninguem melhor que mestre
Osvaldo na madeira
Com sua arte criou muito mais de dez
Eu me criei
Matando a fome com tareco e mariola
fazendo versos dedilhados na viola
Por entre os becos do meu velho Vassoural.

TEXTO 2 (O homem nessa composição está em posição empoderada em relação à mulher. Observe que ele está na rua e a mulher em casa esperando por ele. O discurso mostra não apenas a divisão sexual dos espaços, mas que a diversão para o homem não envolve necessariamente a mulher, mas para a mulher seria imprescindível a presença do homem, reforçando a relação de dependência dela com ele.)

COMENDO ÁGUA
Aviões do Forró

Alô, tô num bar chego já
tô aqui batendo um papo
comendo água
Alô, tô num bar chego já
pode ir fazendo a cama
pra quem te ama
Hoje convidei alguns amigos pra beber
Mas daqui a pouco só vai dar eu e você
Não fique preocupada nem grilada
porque que não vou demorar
Eu não vou te deixar abandonada
vale a apena me esperar
Pra gente se amar
Alô, tô num bar chego já
tô aqui batendo um papo
comendo água
Alô, tô num bar chego já
pode ir fazendo a cama
pra quem te ama
Daqui a pouco amor
volto pra casa
Pra gente dar um show
de madrugada
Vamos fazer amor
beijar na boca
Vou te dar meu calor
vou te deixar louca
Alô, tô num bar chego já
tô aqui batendo um papo
comendo água
Alô, tô num bar chego já
pode ir fazendo a cama
pra quem te ama
Alô, tô num bar!

TEXTO 3 (O texto abaixo também faz parte do forró chamado eletrônico. A representação masculina é feita por meio do seu empoderamento em relação à mulher, desqualificada sobre o epíteto de periguete. A mulher faz parte da diversão do homem e esta, diferentemente da anterior (texto 2), está na rua e não em casa. Nas duas composições, a satisfação da mulher se restringe ao homem, tornando-o, desta forma, necessário. Vale ressaltar que na composição abaixo as idéias são reforçadas através de um jogo intertextual com a propaganda de cerveja Schin (Nova) cujo slogan é Pega Leve. A princípio a interlocução se dá com um tu (Ivete) que pode ser substituída qualquer mulher, inclusive Juliana.A quem se está dizendo para pegar leve? Estaria aqui um deslizamento de gênero?

IVETE
Forrozão du Karai
Ô, Ivete
Desce uma nova pra mim
Ô, Ivete
Eu to bebendo, eu vou curtir
Ô, Ivete
Desce uma nova pra mim
Agora pega leve aê
Todo final de semana a gente quer se divertir
Eu não tô nem aí
Eu não tô nem aí
Eu convido as piriguetes
Pra gente sair por aí
Só quero é curtir
Só quero é curtir
Eu bebi num bar na boa
Bebi foi pra valer
Bebi com Juliana até o dia amanhecer
E galera não esquece

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O PAGODE OU A DERROTA DAS MULHERES

Parodiando um livro intitulado "A ópera ou a derrota das mulheres", de Catherine Clément, 1993, editado pela Rocco, passeio pelas letras das composições de pagode baiano para encontrar os ecos de uma cultura ainda relutante quanto a liberdade sexual da mulher. Se achamos que os anos 60 enterraram os fantasmas de um patriarcado tenebroso, o novo milênio nos oferece textos exemplares que nos mostram a sexualidade feminina como alvo de controle do discurso do homem, pois aparece como um território desejado e, portanto, a ser satisfeito; de tensão, que situa o sujeito que deseja, paradoxalmente, na condição de objeto, pois necessita, depende do outro para que seu desejo se realize, o que significa transferir poderes para o outro. Essa situação de carência, no sentido filosófico do termo, do homem projeta-se nas práticas sociais com violência, ecoando gestos misóginos.
Vejamos alguns versos dos grupos de pagode da Bahia:

"
E toda noite ela quer fazer esquema,
pega um pega geral pra ela não é problema, no
carro, no cinema, ou no meio do mato estilo
cachorra ela fica de quatro."
(Ela é dog, Oz Bambaz)

Pela visão masculina, a mulher para não ser rotulada e depreciada de "cachorra", isto é, prostituta, ela deve obedecer uma frequencia (qual seria?) de saídas e ter apenas um parceiro. Longe de me deter em um comparativismo, do tipo o homem pode fazer tudo isso sem ser depreciado, ao contrário, passaria uma imagem positiva de virilidade, a mulher teria ainda que limitar-se quanto ao "estilo". Esse discurso, digno de textos vitorianos, período da história da sociedade inglesa do século XVIII/XIX, quando a moral sexual era sustentada através da repressão sexual, sobretudo das mulheres, parece confirmar o que Susana Faludi, nos anos 80, chamou de reação ao feminismo. Tal observância do comportamento feminino perpassa pelos três aspectos mencionados - freqüência, quantidade e performance - categorizando a mulher pelo comportamento sexual que tem. O que está sendo dito no silêncio é que uma jovem (considerando o público que escuta majoritariamente essas composições) para não ser vista como objeto sexual, uma prostituta, precisa atentar para esses três aspectos citados. Também não quero dizer que o comportamento dessas mulheres aqui representadas expressam a sua liberdade, já que elas reproduzem muitas vezes o que a sociedade espera delas.
Paradoxalmente, a masculinidade é sustentada pela mulher que é depreciada na música. Portanto, ao mesmo em que a "mulher fatal" é desejada e ostensivamente representada em diversos meios pelo homem, para sustentar uma masculinidade forjada (que ele sequer percebe), ela é depreciada por também representar aquilo que não pode ser pertencido e que também expõe fragilidade e limitações humanas sexuais. Por isso essa mulher aparece desejada e desqualificada ao mesmo tempo. Essa situação torna a vivência da mulher mais difícil porque ora ela é desejada, ora, pelos mesmos motivos, ela é execrada.

Vejamos outros versos:

"
Diana, menina, danada, rosada, rodada, tarada;
Saiu pra que;
Eu vou varrer, eu vou varrer;
Eu vou varrer, eu vou varrer."
(Dyana quer varrer, Oz Bambaz)

Esse trecho me chamou a atenção por conta do sentido de controle da mulher pelo gesto de SAIR. O espaço público ainda seria hostil às mulheres? "Saiu para quê?" não estaria questionando a mulher no espaço público e vinculando essa saída a uma experiência sexual? Esse pensamento está na base ideológoca do patriarcado (que alguns e algumas insistem em dizer que não existe mais) porque consiste em aprisionar a mulher no espaço doméstico. A mística feminina (Betty Friedan), que impunha um problema que não tinha nome para as mulheres de classe média norte-americana nos anos 60, combina-se a elementos mais contemporâneos e, num "remake", inscreve, no século XXI, no Brasil (e muito provavelmente em outros países também), mulheres de diferentes classes sociais, a um programa de reestruturação que inclui, novamente, a intervenção no comportamento feminino. O pagode baiano tem sido um espetáculo de ressignificações comportamentais de gênero para as mulheres que, sem outras alternativas que as valorizem, entregam-se à sorte ou ao pagode. Não existe para a mulher uma outra forma de se inserir que não seja pelo seu corpo, modelado, desejado, velado, destroçado, mas sempre corpo fetichizado pelo olhar masculino.
AINDA A MÍSTICA FEMININA
Inicio esse blogue fazendo uma homenagem póstuma a Betty Friedan, escritora norte-americana, feminista, que faleceu no dia 04 de fevereiro de 2006, portanto há quase três anos. Felizmente a morte não leva junto o pensamento e isso faz com que algumas pessoas entendam que o real sentido de imortalidade consiste nas idéias que são deixadas para a posteridade: o nosso legado. Em se tratando de Friedan, o seu maior legado foi nos ter deixado um precioso livro intitulado A Mística Feminina. Apesar de analisar as mulheres casadas da classe média norte-americana, podemos perceber o quanto o livro é atual e o quanto alguns mitologemas de gênero perduram na sociedade em que vivemos, para o infortúnio de mulheres e homens, portanto da humanidade.

Betty Friedan ao identificar os problemas das mulheres daquela geração e classe social chamou-os, de início, de "sem nome" porque não havia um nome para o que as mulheres sentiam e as levavam aos consultórios psicanalíticos. Um dos espaços questionados por Friedan era a mídia. Além dos depoimentos das mulheres, com a devida análise, Friedan questionou o papel da mídia na construção dos mitos de feminilidade - senha de acesso e de derrota para a mulher. De acesso porque sem eles as mulheres eram excluídas, não eram vistas como mulheres, de derrota porque ao aceitá-los, estava destinando para si mesma os limites impostos ao sexo.

As peças publicitárias e as revistas, sobretudo, eram vistas como veículo ideológico que reproduziam um modelo de comportamento feminino a ser aceito consensualmente. Essa discussão também está presente nas reflexões de uma outra escritora norte-americana que analisa a mídia interseccionando com as questões de gênero e mulher - Susan Faludi. Em seu livro intitulado Backlash, publicado nos Estados Unidos nos anos 80, e no Brasil dez anos depois, Faludi, afirma que as mulheres nunca alcançaram a conquista plena, como é alardeado pela mídia. Segundo ela, as mulheres teriam chegado perto, mas não o suficiente para desmontar a estrutura burguesa que tentou sedimentar as desigualdades das relações de gênero, há anos denunciadas pelas feministas de várias gerações e países. Faludi amplia a leitura midiática sobre a mulher, evidenciando um momento de reação nos anos 80, acrescentando leituras sobre filmes.
Betty Friedan, antes de Faludi, havia exposto que as mulheres da sua geração, a de 60, estavam confinadas ao lar, reduzindo seu potencial humano às tarefas da casa: cuidar do marido e dos filhos. A existência da mulher consistia em viver para o outro, definindo a sua identidade a partir dos papéis sociais de mãe e esposa, já que enquanto indivíduo-mulher, ela não existia para a sociedade. Faludi, vinte anos depois, mostra pontos de conexões entre os anos 50 e 80, mostrando que nos anos 80 houve uma reação contra a mulher da qual fez/faz parte a mídia."O estranho é que, à medida que a mística feminina se divulgava, negando à mulher profissões ou quaisquer compromissos fora do lar, triplicava o número de mulheres trabalhando em diferentes empregos. E' verdade que duas em três continuavam a ser donas de casa. Mas por que, no momento em que as portas do mundo se abriam finalmente para todas as mulheres, a mística negaria os sonhos femininos de um século?" (Friedan)
(Esse artigo foi publicado em http://midiaegenero.blogspot.com/, de minha autoria, mas que foi excluído por razões que desconheço)