Estamos em plena época junina e a Bahia, assim como outros estados do nordeste, respira o São João. Andando pela cidade, verificamos que a paisagem mudou: os outdoors anunciam as atrações musicais das cidades do interior e, na capital, os produtores da indústria cultural criam espaços para aqueles que não vão viajar. Nos Shoppings, os corredores também anunciam as festas programadas nas cidades. As lojas exibem nas vitrines as peças de vestuário em desenhos de xadrez. As casas de show e restaurantes contratam bandas para atrair o público e ampliar as vendas dos produtos da casa. Enfim, imersos nessas práticas linguageiras muitos não se dão conta de como a indústria cultural, ao se apropriar das práticas populares, ressignificam e transformam em consumo os produtos dessa mesma cultura, controlando e regulando os gestos dos membros de uma sociedade. Um dos produtos culturais da nossa cultura é a alegria.
Acontece que no meio dessas linguagens também (e, sobretudo) estão as representações de gênero veiculadas por meio dos enunciados das peças publicitárias, das músicas, do vestuário, das performances de palco dos artistas, na performance do público, enfim, através das várias e diferentes materializações discursivas que engendram a ideologia de gênero, construindo relações assimétricas entre homens e mulheres.
Se observarmos e compararmos as letras de música, estilo pé-de-serra e eletrônico, veremos que há aparentemente uma mudança nas representações de gênero. O forró pé-de-serra trata da assimetria de gênero desempoderando o homem, mas apontando para uma saída, portanto um empoderamento. Em geral, a mulher o abandonou, mas como o homem é o sujeito, procura encontrar o caminho para a superação. Assim, o eu do enunciado da música busca se reconstituir mostrando-se sofredor, enquanto a mulher é vista como ardilosa, pérfida, alguém que não soube dar valor a ele.
Já o forró eletrônico apresenta uma outra relação de gênero onde o homem exerce completo controle sobre a mulher. Ele age, nomeia e toda a atitude atende aos seus propósitos, numa clara tentativa de reforçar a representação de masculinidade pautada no poder do homem sobre a mulher, colocando-a no duplo espaço de ação historicamente conhecido e questionado pelas feministas (regressão?): a rua e a casa. Vejamos um exemplo disso:
TEXTO 1(Letra de música estilo forró pé-de-serra. O discurso do homem desempoderado é retomar o poder e ele o faz buscando construir uma imagem positiva de si e negativa da mulher por quem desenvolve uma afeição que o subordina a ela)
TARECO E MARIOLA (Petrúcio Amorim)
Eu não preciso de você
O mundo é grande e o destino me espera
Não é você quem vai me dar na primavera
As flores lindas que eu sonhei no meu verão
Eu não preciso de você
Já fiz de tudo pra mudar meu endereço
Já revirei a minha vida pelo avesso
Juro por Deus não encontrei você mais não
Cartas na mesa
O jogador conhece o jogo pela regra
Não sabes tu eu já tirei leite de pedra
Só pra te ver sorrir pra mim não chorar
Você foi longe
Me machucando provocou a minha ira
Só que eu nasci entre o velame e a macambira
Quem é você pra derramar meu mungunzá
Eu me criei
Ouvindo o toque do martelo na poeira
Ninguem melhor que mestre
Osvaldo na madeira
Com sua arte criou muito mais de dez
Eu me criei
Matando a fome com tareco e mariola
fazendo versos dedilhados na viola
Por entre os becos do meu velho Vassoural.
TEXTO 2 (O homem nessa composição está em posição empoderada em relação à mulher. Observe que ele está na rua e a mulher em casa esperando por ele. O discurso mostra não apenas a divisão sexual dos espaços, mas que a diversão para o homem não envolve necessariamente a mulher, mas para a mulher seria imprescindível a presença do homem, reforçando a relação de dependência dela com ele.)
COMENDO ÁGUA
Aviões do Forró
Alô, tô num bar chego já
tô aqui batendo um papo
comendo água
Alô, tô num bar chego já
pode ir fazendo a cama
pra quem te ama
Hoje convidei alguns amigos pra beber
Mas daqui a pouco só vai dar eu e você
Não fique preocupada nem grilada
porque que não vou demorar
Eu não vou te deixar abandonada
vale a apena me esperar
Pra gente se amar
Alô, tô num bar chego já
tô aqui batendo um papo
comendo água
Alô, tô num bar chego já
pode ir fazendo a cama
pra quem te ama
Daqui a pouco amor
volto pra casa
Pra gente dar um show
de madrugada
Vamos fazer amor
beijar na boca
Vou te dar meu calor
vou te deixar louca
Alô, tô num bar chego já
tô aqui batendo um papo
comendo água
Alô, tô num bar chego já
pode ir fazendo a cama
pra quem te ama
Alô, tô num bar!
TEXTO 3 (O texto abaixo também faz parte do forró chamado eletrônico. A representação masculina é feita por meio do seu empoderamento em relação à mulher, desqualificada sobre o epíteto de periguete. A mulher faz parte da diversão do homem e esta, diferentemente da anterior (texto 2), está na rua e não em casa. Nas duas composições, a satisfação da mulher se restringe ao homem, tornando-o, desta forma, necessário. Vale ressaltar que na composição abaixo as idéias são reforçadas através de um jogo intertextual com a propaganda de cerveja Schin (Nova) cujo slogan é Pega Leve. A princípio a interlocução se dá com um tu (Ivete) que pode ser substituída qualquer mulher, inclusive Juliana.A quem se está dizendo para pegar leve? Estaria aqui um deslizamento de gênero?
IVETE
Forrozão du Karai
Ô, Ivete
Desce uma nova pra mim
Ô, Ivete
Eu to bebendo, eu vou curtir
Ô, Ivete
Desce uma nova pra mim
Agora pega leve aê
Todo final de semana a gente quer se divertir
Eu não tô nem aí
Eu não tô nem aí
Eu convido as piriguetes
Pra gente sair por aí
Só quero é curtir
Só quero é curtir
Eu bebi num bar na boa
Bebi foi pra valer
Bebi com Juliana até o dia amanhecer
E galera não esquece
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