sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

"PORRA", UMA AGRESSÃO DE GÊNERO

Estava prestes a encerrar as minhas navegações na internet nesta manhã quando me deparei com uma matéria jornalística do Correio da Bahia que informava da proibição da SUCOM dos outdoors que anunciavam a nova música do cantor Tomate. O título da música: "Eu te amo porra" e na sequência um subtexto "você vai amar essa música". Vejamos alguns enunciados:

a) "Censuraram todos os meus outdoors da música 'eu te amo porra' aqui em Salvador. Quem não fala porra??? Hipocrisia" (o cantor). Aqui existe a tentativa de persuadir pelo quantitativo (ver ´Tópica de Aristóteles), já que é o objeto em questão é aceito por todos (universalização sugerida por uma pergunta e não como uma afirmativa, portanto indireta), então é válido.

b) "Por que tirar o 'porra' se é tão natural em Salvador? No contexto da música, se referia a uma expressão de amor. Não ficamos felizes com essa decisão." (Empresário). Neste enunciado, recursos como o apelo a identificação geográfico-cultural, assim como a associação do objeto em questão ao sentimento amoroso, aparecem para reforçar o caráter universalizante e afetivo. Vale mencionar que a indústria do amor romântico (expressão minha) é que mais vende.

c) "Há pouco tempo, na Paralela, tinha um outdoor escrito 'Baêa Minha Porra' e não foi censurado. Por que será?" (Empresário). Mostrar a ocorrência em outras situações em que o tratamento ao objeto tenha sido outro, serve para minar o argumento primeiro, já que pelo princípio da equidade, o tratamento dever ser igual pra todos. É um argumento que vai ao encontro dos valores como a justiça, igualdade, solidariedade que lastreiam a cultura ocidental.  

d) Decreto de Publicidade – Lei 12.392/99, Artigo 15, Inciso IV –, que proíbe a colocação de qualquer meio ou exibição de anúncio, seja qual for a sua finalidade, forma ou composição “quando considerado atentatório, em linguagem ou alegoria, à moral pública e aos bons costumes”. (Órgão) Argumento via legislação também encontra guarida em nossa cultura que reivindica a legislação para a manutenção da ordem.

Os argumentos são todos plausíveis. No entanto, a questão que suscito neste momento é em relação ao que pode ser substituído pelo vocativo "porra", cuja expressão aparece, por sinal, sem a vírgula que caracteriza o vocativo, o chamado. O enunciado seria: Eu te amo, porra. Assim, a questão é identificar quem chama quem? De que forma?

Antes de responder, vejamos algumas definições para a palavra "porra": 1) é o fluido orgânico produzido pelos machos de muitas espécies de animais para transportar os espermatozóides até o local de fertilização na fêmea; 2) Porrete, porra, clava ou bastão é um tipo de taco ou bastão, mais grosso numa das extremidades e geralmente feito de algum material sólido - podendo ser de madeira, pedra, ou metal - normalmente utilizado para fins de necessária força física ou em batalhas de estilo corpo-a-corpo, em especial pelas forças policiais.

Pelas definições acima, percebemos que "porra" faz parte de um campo semântico  masculino, portanto guarda em seu sentido uma referência aos homens. Neste sentido, "porra" poderia ser, por relação paradigmática, substituído por homem ou por um nome de homem. Alguém chama um homem e diz que o ama. Porém, o uso cotidiano da palavra em diferente situações diluiu o seu sentido original, mas manteve o sentido que a associa a violência fálica. Deste modo, "porra" pode estar se referindo a uma mulher (dentro de um código heteronormativo), principalmente porque o contexto nos informa que se trata de uma declaração de amor. Existem contradições no enunciado que apontam para os conflitos de gênero. Como se pode amar com tanta violência e agressão? Será que os homens não sabem mais expressar seus sentimentos sem violência, sem agredir a mulher? Como as mulheres se veem nesta confusão em que aparecem "valorizadas" como objeto de desejo,através da inscrição "eu te amo", mas ao mesmo tempo desqualificadas pela expressão "porra" (se é que percebem esse detalhe)? Elas tendem a se identificar ou rejeitar? Qual o poder de um enunciado quando ele é proferido por um artista que é admirado por um público em formação como o adolescente? Se tudo que há nele, elas gostam, como não aderir a esse "chamado"? Esse enunciado não corrobora para uma aceitação da violência física, através dao raciocínio: ele me agride, mas me ama? 

Assim, para além das questões morais, vejo o enunciado com extrema violência às mulheres e, por isso, considero-o machista, sexista.

http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/eu-te-amo-porra-empresario-de-tomate-critica-decisao-da-sucom/

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O PENTE: METÁFORA DA MODERNIDADE: Uma leitura sob o viés de gênero e raça

A nossa memória cultural está repleta de narrativas que evocam  simbologias e sentidos, muitas vezes tendo um simples objeto como texto.

O pente é um desses utensílios de grande simbologia, portanto crivado de valor, de ideologia de classe.  O pente, um antigo artefato cultural vinculado a aparência, à sedução, é em diferentes culturas e épocas associado à mulher. À guisa de ilustração, na literatura oral brasileira, Iara Mãe-D'água é vista no rio penteando os cabelos com um pente de ouro. Já em Portugal, as mouras encantadas exerciam o seu poder de sedução através de uma imagem emblemática, penteando-se à beira do rio também com um pente de ouro, aqui visivelmente versões de uma mesma lenda.

Na modernidade, outros significados - igualmente mitificados - sobre esse objeto foram sendo adicionados, já que o cabelo sempre foi um elemento muito marcante na identificação de um grupo social. Quem não se lembra das perucas brancas francesas usadas pela monarquia? Ou dos penteados das mulheres vitorianas? Ou ainda do estilo black power dos anos 70? O cabelo era (é) uma linguagem não-verbal que dizia (diz) muito sobre a classe social, a etnia, gênero, idade, entre outros.

O pente, na visão moderna, é retextualizado para dar conta da ideologia da classe burguesa, ao promover os hábitos citadinos e uma estética que projetasse os ideais desta classe representada na figura dos cabelos desembaraçados, mas, também “arrumados”, esticados, lisos. Nas canções populares no Brasil, as quais apresento mais adiante, o pente é destacado referindo-se à mulher negra,  envernizado por um discurso de beleza que funciona como ferramenta ideológica de um discurso hegemônico, articulando o seu uso à civilidade, leia-se um conjunto de regras sociais e de comportamento que proporcionava uma sensação de pertencimento a um grupo social de prestígio, daí a valorização deste objeto na veiculação de uma estética construída pelo discurso hegemônico. Assim, o pente aparece como elemento disciplinador, homogeneizador, que tenta criar um padrão de beleza, instituindo como valor e prestígio o cabelo liso ou liso-ondulado.
No homem, a estética da modernidade em relação ao cabelo é representado pelo corte e pela ausência de barba e bigode, este com mais adesão entre os jovens solteiros do que entre os mais velhos e casados. De qualquer sorte, a barba e o bigode deveriam estar aparados, mas mantidos devido ao traço distintivo de masculinidade e de mudança de um status social. O cuidado com bigode e barba eram exigidos distinguindo o homem civilizado do “bárbaro” representado como cabeludo. O cabelo curto, nos homens, passou a ser um traço de civilidade, de modernidade, de classe social. Em relação à mulher, o corte, anos depois, foi uma explosão comportamental, já que era visto como símbolo do homem. A imagem da mulher moderna com cabelos curtos sofre resistência cultural porque os cabelos longos e lisos são valorizados como marcas de feminilidade, de sedução, de virgindade, haja vista as lendas das mulheres que seduziam os homens através do gesto de pentear seus longos cabelos. Em termos de textura, o cabelo da índia e da branca tem em comum serem lisos, correspondendo assim ao imaginário de sedução construído pelo ocidente atrelado ao cabelo liso. Já em relação à mulher negra, essa imagem não consegue ser justaposta a menos que houvesse um meio que a fizesse se aproximar do padrão de beleza europeu. O pensamento da modernidade é estruturado com base em um discurso hegemônico que tende a apagar a diferença por meio do discurso da igualdade, sendo que o paradigma estético é determinado a partir de uma estética particular, neste caso branca. Em relação ao cabelo liso e longo, essa imagem passa por um processo de valorização e afirmação, contrapondo-se ao cabelo curto e crespo. Ainda hoje, a imagem de feminilidade perpassa por esta estética, vide as propagandas de xampus que espetacularizam esse modelo de beleza feminina. A beleza feminina, escrita com o artigo definido feminino, corresponde a uma beleza em particular que se pretende universal. Por esse processo de universalização, o discurso hegemônico buscou pautar-se e se fortalecer escamoteando a sua ideologia de classe.

Mário Varela Gomes, em estudo sobre a iconografia na Europa, fala da presença do pente nos sepulcros femininos, além do espelho e da espada. O pente, segundo o estudioso, foi um objeto de adorno entre os egípcios e gregos e, embora não tenha encontrado no Google um artigo mais relacionado a um viés de gênero e etnia, posso dizer que, apesar do pente ser uma invenção antiga, o seu uso na modernidade, em um país colonizado como o nosso, precisa ser relacionado às circunstâncias de uso.

Assim, o pente na modernidade passa por um processo de ressignificação e, considerando o propósito da classe dominante de branqueamento, pentear o cabelo ou alisá-lo consiste em um ato de tornar o outro o mesmo. A partir de um discurso de igualdade, de inclusão, exclui-se o diferente, a outra cultura, os outros traços. A igualdade, a civilidade e o desenvolvimento carregam em seu sentido histórico uma ideologia de classe que circula não apenas nas esferas políticas e econômicas, mas na cotidianidade, nas relações e nos comportamentos, até porque essas esferas não existem separadas umas das outras, mas imbricadas. O projeto de modernização consistia em adequar todos os membros da sociedade, sob todos os aspectos, às normas de onde partia o sentido de civilidade e fazer com que os outros países entrassem numa esquizofrênica busca pela identificação com quem tinha o lugar de prestígio social, tendo como paradigma os valores estéticos de visão etnocêntrica, basicamente produzidos na França e Inglaterra nos séculos XIX e início do XX, com o apoio das revistas femininas que eram inicialmente publicadas para as mulheres da elite brasileira, mas que no decorrer dos anos foram sendo direcionadas para as camadas mais populares em nome de um projeto de radical transformação social e cultural.

Nesse processo de modernização, as mulheres são educadas para atenderem ao projeto burguês. As mulheres modernas eram aquelas que aceitavam e faziam parte das regras sociais que a cultura hegemônica estabelecia, elegendo os valores de classe como os valores que proporcionavam aceitação, sentido de pertencimento, felicidade, alegria e realização, independente de as mulheres serem brancas ou não. Elas serão disciplinadas a seguirem um padrão de comportamento e de beleza que, sem dúvida, para a mulher negra provocará efeitos conflitantes entre a imagem que elas têm e o que é valorizado pela cultura que se pretende hegemônica.

Na música popular brasileira, o pente, quando se refere à mulher negra, não tem um sentido de adorno, mas de obstáculo, de conflito. Ele aparece como objeto de distinção e aculturação: "nega do cabelo duro que não gosta de pentear" (Fricote, de Luiz Caldas/Paulinho Camafeu, 1984), "Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?" (Nega do cabelo duro, de David Nasser/Rubens Soares, 1942). Nos primeiros versos da música Fricote, uma voz do texto, o homem negro e da classe popular, constata uma particularização, que chama a sua atenção, expressa na estética de uma mulher negra que, na sua visão, "não gosta de pentear" os cabelos. O verbo gostar em sua origem latina significa saborear, sentir prazer, achar bom gosto e que no sentido figurado corresponde a uma experiência afetiva, de amizade, ou seja, perpassa por uma aproximação e identificação. Se gostar evoca esses sentidos, podemos dizer que a mulher negra não penteia os cabelos porque, obviamente dói, e a dor é uma experiência sensorial desagradável (mas que pode ser sentida também devido a uma violência simbólica). A dor, a menos que o sujeito seja masoquista, não é agradável e por isso impede a identificação, a confluência, o prazer. O pente, como nós conhecemos, objeto dentado usado por mulheres cujos cabelos são lisos, é objeto de violência, de dor, de agressão para as mulheres de cabelos crespos. As mulheres negras traduzem a sua resistência à cultura hegemônica branca resistindo ao uso de seus objetos e que na música é mostrada através de um “não gostar”, assumindo uma outra estética e minando uma tentativa de univocidade cultural, um único registro de padrão estético.

No entanto, a letra da música traz enunciados que desqualificam esta mulher que não quer alisar os cabelos, ordená-los, pelo fato de ser mulher, levando-a a se deparar com duas resistências: a étnico-racial e a de sexo e gênero. Além de ter que sustentar a sua auto-estima no que se refere aos seus traços étnico-raciais, a mulher que passa pela rua precisa ainda defender-se do sexismo cotidiano, pelo simples fato de estar exposta ao outro que se vê no direito de molestá-la. A rua é um território marcado pelo homem como constituinte de sua identidade, que não só pretende dominar o espaço, como também o que nele passa.

Em um dos versos da música, quando é cantada, aparece a palavra "olha" (Olha a nêga do cabelo duro). A presença quase imperceptível dessa palavra ressalta não apenas um sujeito que  apreende o objeto em seu campo visual, mas que também aponta para outros, reforçando a sua autoridade e, também, a cumplicidade de gênero. Ao se referir à mulher que passa, o eu-masculino não apenas convoca os outros homens que formam o coro na música, mas aos que estão ouvindo a música, ampliando o seu círculo de significação compartilhada de gênero. A referência ao cabelo duro "que não gosta de pentear" é uma atualização do discurso hegemônico que, a meu ver, não subverte o status da mulher negra e pobre, inclusive por se apropriar de um adjetivo pejorativo "duro" usado em oposição ao liso pela cultura hegemônica, no lugar de crespo. A mulher negra é apontada na rua pelo fato de ser mulher e não pentear os cabelos, fato que, para o olhar do homem, a torna acessível. Além do preconceito étnico-racial e de gênero, o fato de morar na Baixa do Tubo, bairro da periferia de Salvador, acrescenta à mulher um outro componente identitário ao qual precisa também superar, já que a desqualificação se dá na composição da tríade identitária - raça/etnia, gênero/sexo e classe social. 

Do ponto de vista de gênero, a posição da mulher é a de objeto fetichizado porque é o homem que olha a mulher como objeto de desejo e a maneira de ele encontrar o sentido disso é recorrendo ao que a sociedade estabeleceu como sendo atributos do homem, como por exemplo, colocar o outro dentro do seu campo de visão, que ao longo do texto se materializa por meio de uma linguagem que se impõe como poder em relação à mulher, na expressão "pega ela aí”, enunciada em um espaço público - estabelecido como sendo masculino - por meio do coro de homens – acentuando a violência já que reforçada pela referência quantitativa. A mulher que passa na rua para ser diminuída e dominada precisa ser atacada de todas as formas, no que é mais precioso no ser humano: a sua identidade. Na música, entrecruzam-se pelo menos três expressões identitárias: a de gênero, a étnica-racial e a de classe:


Pega ela aí!
Pra quê!
Pra passar batom
A masculinidade se forma a partir da relação de poder com o outro - a feminilidade - que se instituiu em nossa sociedade de forma paradigmática por meio de forte representação etnocêntrica e androcêntrica. Que modelo de feminino esse homem internalizou? Por que passar nessa mulher batom? Que possíveis sentidos envolvem a palavra batom? Por que pentear os seus cabelos? Ao se dirigir à mulher negra quando a sua masculinidade está ameaçada pelo desempoderamento, sobretudo econômico, o homem negro da periferia precisa afirmar o seu poder via a identidade de gênero, da masculinidade, mas que acaba afetando a mulher como um todo, isto é, enquanto a sua igual sob o aspecto de raça e de classe. Estas marcas são desconsideradas porque o que os distinguem é o sexo, o gênero, por meio do qual o homem negro e da classe popular tentará impor o seu poder. A expressão "pega ela aí" sugere força, é um enunciado injuntivo, imperativo (pega = pegue), que contém autoridade e impositividade. Que autoridade é essa?

sábado, 20 de novembro de 2010

O FIM DO PATRIARCADO?

Uma certa propaganda do cereal Mucilon me chamou a atenção. Trazia uma mulher de mais ou menos 30 anos, de classe média que chega da rua reunindo os brinquedos do filho espalhados pelo chão. Tal atitude do filho se deve ao efeito do cereal. O que me chamou a atenção, muito mais do que as palavras proferidas pela personagem, foi a ausência da empregada doméstica ou babá, presença constante nas famílias de classe média. Desconheço uma família, hoje, dessa classe, que não se sustente com a presença de uma empregada doméstica e/ou babá. Diria que, devido a estrutura social de classe e a herança escravocrata que herdamos, é impossível que uma família hoje se mantenha sem a presença da empregada e/ou babá. Certamente, se não fosse isso, as famílias nucleares já teriam sido extintas, a menos que uma revolução nas relações de gênero acontecesse e uma profunda mudança nas relações de classe e raça se efetivasse. Essas relações aparecem intrincadas em nossa cultura e o patriarcado é a resposta. Essas relações existem porque o patriarcado se alimenta dela e quem sustenta esse modelo é cúmplice e mantenedor dessa arcaica estrutura.


Mas a que se deve a ausência da empregada? Por que o interdito? O que se passou na mente de quem sugeriu a omissão, a que classe social pertence ou está a serviço? Que mal estar poderia haver em mostrar uma babá ou empregada doméstica na propaganda? O que não deve ser registrado, mostrado para a telespectadora? Que efeito poderia causar, caso fosse mostrado uma situação mais próxima da realidade?

Os analistas do discurso costumam dizer que mais importante do que é dito é aquilo que não é dito. De fato, o discurso possui, pelo menos, duas dimensões - presença ( o que é escrito ou falado, materializado na língua) e ausência ( o que não foi escrito ou falado, mas está presente no discurso, embora não materializado). Por exemplo, quando digo "eu prefiro salgados", estou dizendo também que não prefiro doces. Na propaganda, a ausência da empregada ou babá disse mais do que a presença da mãe porque na nossa cultura, na realidade em que vivemos, as relações de gênero tem se mantido graças a presença da empregada doméstica. Sem esta figura, uma dona de casa não chegaria tão "fresca" e alegre em casa, catando os brinquedos pela casa depois de um dia extenuante de trabalho.

O texto publicitário oferece alguns indícios no sentido de veicular a idéia de dupla jornada da mulher, mesmo que não esteja muito claro, já que a personagem entra em cena apenas fechando/batendo uma porta, sugerindo que ela estava fora de casa e que ao chegar naquele momento, se deparou com os brinquedos espalhados pela casa. Na realidade, a dupla jornada da mulher de classe média sempre foi atenuada pela presença das empregadas domésticas e babás. A mulher pobre, sim, realiza a, dupla, tripla, jornada, muito embora receba apoio de familiares, vizinhos, raras vezes creches, quando necessita trabalhar.


A cena só caberia em uma cultura ou sociedade não escravocrata, mas em se tratando de Brasil e, mais ainda de Bahia, essa realidade "moderna", da mulher que assume a casa, parece soar no mínimo estranho. A cena não mostra se a personagem realmente estava no trabalho, embora apresente ela em movimento, chegando de algum lugar fora da casa, de qualquer sorte, estava em outro espaço. Não é comum nas famílias de classe média a ausência da empregada ou babá, ao contrário são presenças significativas, chegando a algumas casas possuírem as duas ou até mais.


Essa omissão parece causar um desconforto em quem quis veicular a propaganda, não querendo associar relações tão arcaicas, patriarcais e escravocratas, a um modelo de sociedade moderna (ou pós-moderna?!). O que vemos então? Como acontecia no século XIX, o esforço em colocar o Brasil no compasso da modernidade, através de um modelo de sociedade urbana, que incluía não apenas uma reforma na cidade, mas de comportamento, consistia em eliminar a escravidão, pelo menos oficialmente, por lei, e discursivamente, por conveniência a um projeto de sociedade moderna. Ora a presença da escravidão era impedimento para uma sociedade que se pretendia republicana e moderna, como propagavam os atores da revolução burguesa. Contudo as idéias da revolução não mudaram o alicerce nem da sociedade de origem, e muito menos daquelas que as adotaram. O Estado oficializou a mudança, primeiro com a abolição da escravatura, por causa de razões políticas e econômicas, em seguida com a instauração da República. Contudo, o cotidiano dizia outra coisa, as tensões e os interesse de classe tentavam sustentar os privilégios, tentando ajustar-se aos novos ventos, mas sem alterar drasticamente o status social de cada um. Ninguém tinha interesse de abrir mão dos privilégios, mas sabiam que as mudanças eram inevitáveis. Mesmo assim, tentaram se manter nos lugares de poder, ajustando-se aos novos ideais.


O que vemos na propaganda no século XXI é a mesma estratégia que há séculos vigora: excluir a presença de qualquer resquício que ponha em questão a imagem de um país moderno. Portanto, a propaganda não poderia expor a presença da empregada doméstica porque seria o mesmo que admitir a presença de uma escravidão, ainda que disfarçada.


Do ponto de vista feminista, existe uma outra questão: a mulher de classe média, para manter os privilégios de classe, acaba sustentando um traço da ideologia patriarcal, ao aceitar que o homem não divida a responsabilidade da casa com ela e a saída encontrada por ambos está na empregada doméstica. Nesse sentido, os interesses de classe sobrepõe-se a qualquer outro interesse, inclusive o de gênero. A cumplicidade da mulher, esposa, em relação ao homem, marido, se dá para manutenção do status social e mina qualquer outro vínculo ideológico possível.


A presença da escravidão nas famílias, na figura da empregada doméstica, em sua ampla maioria negras, sustenta as históricas relações patriarcais escravocratas porque em nossa sociedade a opressão e a subordinação da mulher não acontece apenas em relação ao homem, mas a depender, também por outra mulher, de classe diferente.
Se considerarmos a ausência da empregada ou da babá, será que a mulher de classe média, esposa e mãe, conseguiria desempenhar essa dupla ou tripla jornada? Das duas uma: ou ela chegaria a uma completa estafa (acompanhada ou não de morte física) ou o marido teria que ajudar em casa nas tarefas domésticas. Como a mulher de classe média não quer morrer, mas também não quer perder o marido, resolve ajustar-se ao velho código e manter a estrutura patriarcal escravocrata.


A propaganda é exemplar nisso porque ela não representa o que de fato existe nas relações sociais. Ela cumpre o papel ideológico ao omitir as relações de classe, gênero e raça na sociedade. De classe porque torna invisível a presença da empregada, lugar constitutivo da manutenção de ordem social secular, nas relações sociais no Brasil, sobretudo na Bahia, de onde parte o olhar de quem escreve esse texto. De gênero porque apresenta a sustentação dos papéis sociais - ainda que a mulher venha de fora, é ela quem cuida da arrumação da casa e da alimentação do filho. De raça porque, em se tratando da Bahia, a maioria das empregadas é negra, uma herança da escravidão que se mantém em culturas mais conservadoras, como a Bahia, historicamente fundada nas relações patriarcais e escravocratas.


A propaganda esconde, portanto, através do que não é dito, o lastro patriarcal que sustenta as relações de classe, gênero e raça no Brasil e na Bahia. Apesar de não estar no texto, está dito que o patriarcado ainda vive na forma de opressão da mulher, seja na figura de esposa e mãe, seja na figura da empregada doméstica, enfim que a mulher de classe média não se emancipou e atrela outras mulheres ao seu processo de alienação.

domingo, 14 de novembro de 2010

REVISTAS "FEMININAS"

Há muito tempo venho acompanhando as revistas expostas nas bancas de revista e as suas capas, atenta aos discursos difundidos pelos meios de comunicação, através das combinações de diversas linguagens. Seguindo as minhas inquietações, me deparei com um conjunto de revistas em uma banca localizada na rodoviária de Salvador, que custa entre R$1,99 a R$3,90 direcionada a um público feminino de menor poder aquisitivo, muito embora possa ser lido por qualquer pessoa.

Interessei-me imediatamente pelos textos exibidos neste espaço da revista, a fachada, o chamariz, observando la ênfase temática, a sutileza das ambigüidades e a ideologia ancorada nas imagens e palavras. A violência chega rapidamente aos olhos no arcabouço da linguagem e nos assuntos escolhidos para alcançar um público cada vez mais atado às representações de feminilidade, afinando as exigências de uma ordem social burguesa às necessidades materiais e espirituais da classe social economicamente pobre. Para a burguesia, a família nuclear aparece como pedra angular desta ordem, por isso intocável. Do século XVIII até hoje ela permanece, embora com outras configurações. Remetendo às palavras de Eni Orlandi, quando menciona a coexistência de traços permanentes e transformados nos discursos, penso que, em se tratando de organização social, a ordem familiar burguesa aparece como o traço permanente na estrutura da sociedade ocidental, apesar das alterações que ela mesma abriga, sem com isso ameaçar a sua existência. A relação entre a mulher e família, assim como a mulher e sexo, permeia os discursos do ocidente, em diferentes áreas: científicas, literárias, artísticas, midiáticas, dentre outras.


A guisa de reflexão, tratarei da capa da Revista Super Prática - sua vida muito mais prática - , ano I, nº 01, que traz do lado direito a atriz Susana Vieira com o seguinte texto: "A Maria do Carmo de Senhora do destino: cada vez mais linda" e mais "Como ficar bonita: a estrela Susana Vieira dá a receita de beleza". Logo mais abaixo, a promoção estampa: "leve 3 pague 1: você nunca pagou tão pouco por tanto conteúdo!" E mais embaixo: "Revista + Encarte de sexo + cadernão de receitas". Ao lado esquerdo, na parte de cima, um texto dentro de uma seta garante: "acabe com suas dúvidas sobre sexo - revista brinde grátis". Seguindo abaixo, a leitora encontra as seguintes orientações: "Visual nota 10, rosto sem rugas, roupas da moda, cortes de cabelo", continuando em direção ao pé da página, a revista indica os seguintes rumos: "sua casa em ordem: troque o gás você mesma, economiza água e energia, guia de faxina, acabe com as baratas". Por último, com a seguinte chamada "E MAIS", foram inscritos cuidados e macetes: "elimine manchas, cuide de sua segurança, como dar nó em gravatas, monte seu próprio colar".


Este caldeirão de textos, somados às cores e imagens, onde predominam o vermelho, o amarelo e azul, serviu para diversas indagações, principalmente uma autocrítica, da pouca intervenção, ou talvez da pouca visibilidade, das ações feministas do ponto de vista da crítica da cultura, com mais ênfase. Talvez nos falte a veia aguerrida das primeiras mulheres que tiveram de rasgar caminhos com palavras e gestos que punham em questão os alicerces do patriarcado. Talvez nos falte efetivamente uma posição mais pungente no que diz respeito aos avolumados discursos sobre os lugares das mulheres, sobretudo da classe pobre. Por outro lado, ao mesmo tempo em que verificamos enunciações a respeito dos avanços da ciência, da tecnologia, das relações profissionais, percebemos que, no "universo paralelo" das experiências das mulheres, tais avanços não chegam ou até mesmo dizem ter chegado, mas que na prática não verificamos. Para as mulheres de classe baixa resta apenas, pelo visto, a sustentação de uma ordem que necessita de um contingente esmerado em cuidados da casa, nas artes do sexo e da culinária. Curiosamente, em um momento em que se fala tanto de uma mudança nos papéis de homens e mulheres, questiono se esta situação efetivamente existe ou se não é mais uma artimanha que envolve interesses, seduzindo as mulheres para uma confusão identitária, a fim de que mulheres tenham uma imagem de si mais liberta, mais emancipada, mais realizada, quando, possivelmente, toda a suposta mudança aparente está condicionada a permanência da base de sustentação da ordem social burguesa.


Na revista, o apelo a gratuidade, a um custo de R$3,90, confunde-se com outros chamamentos, como praticidade, efeito, resultados, satisfação, felicidade, a um custo quase zero (!?). É visível e ostensiva associação tendenciosa da mulher à beleza e à casa. Ser prática, isto é, cumprir todas as tarefas da casa de forma econômica e rápida, no estilo "faça você mesma" e, paradoxalmente, permanecer bela, são convites constantes nas revistas "femininas". Desde o século XIX, ou para ser mais precisa, desde a ascensão da burguesia, assuntos como beleza, moda, cuidados com a casa (as crianças não apareceram desta vez), passeiam pela capa de revistas, atendendo aos valores impressos pelos discursos da burguesia.

Além das chamadas já expostas, a revista traz um encarte cujo título é: "Sexo: 69 pergunta e respostas - acabe com todas as suas dúvidas". A revista concentra idéias de um poder feminino alicerçado a uma satisfação masculina, mas forjada como feminina. Em um dos títulos do encarte sobre sexo há o seguinte enunciado: "Experimente: você pode ter prazer com essa fantasia masculina", o enunciado sugere que nem sempre agradar o homem pode ser confortável para a mulher, mas que ela pode se esforçar para transformar uma situação dolorosa em algo agradável para ela, mesmo sabendo que não é. O que isso significa? Mais uma vez a revista feminina centra-se na vontade masculina.

Conforme a revista, basta ser bela, ser uma boa amante e saber cozinhar para a garantir a felicidade, mas de quem?

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O PAGODE BAIANO (parte II)

Se por um lado o pagode baiano expressa a voz da classe popular, essa voz, do ponto de vista de gênero, é masculina, e vai significar o outro, a mulher, a partir do que os membros de uma sociedade, da qual ele faz parte e dialoga, considera. Mas na prática as relações de gênero são mais complexas e muitas vezes as contradições dessa relação se expressam no próprio enunciado.  A performance do homem, corpo semiótico do qual parte enunciados conflitantes, em relação à mulher, ratifica uma antiga representação de mulheres que ora aparece como uma "patricinha" (as musas, anjos, deusas, virgens) que correspondem às mulheres que possuem um comportamento mais próximo ao que se convencionou chamar de "moça de família", a escolhida para ser a "mãe dos seus filhos" e com quem correrá menos riscos. É a mulher para ser apresentada socialmente aos amigos, parentes, etc, ora aparece como "piriguete" (as medusas, as pandoras, os demônios, as serpentes) que precisam ser mantidas a uma certa distância, mas eventualmente próximas a fim de que possam realizar as suas fantasias e desejos sexuais.  Do ponto de vista da classe social, o pagode pode ter um valor cultural, já que as vozes que estão performatizando as músicas e até mesmo compondo são de sujeitos da periferia das cidades, das classes populares. No entanto, faz-se necessário também deixar registrado que esses sujeitos não estão isolados do mundo e que fazem parte de um legado cultural, diversamente cultural, e que são afetados pelo discurso hegemônico machista e misógino, presentes em vários setores da sociedade. Se por um lado, pode-se considerar o pagode como uma "livre" expressão de uma classe, não podemos deixar de dizer que essa liberdade é obtida mediante negociações e a grande negociação é o que se diz em relação às mulheres.  As letras trazem enunciados que nos fazem lembrar discursos misóginos seculares eivados de preconceitos, já que a liberdade para a mulher consiste em um autocontrole do seu corpo, o que pode deixar o outro na posição de controlado. Este poder levou muitas mulheres à fogueira séculos atrás. Logicamente, que os discursos caminham no sentido de que tal posição da mulher não deve ser aceita pelo homem e dele deve partir as regras de conduta das mulheres. Quando este homem é da classe popular, as regras ganham um tom universalizante, pois atravessa diferentes camadas sociais, agradando a todos. O homem é educado para controlar tudo, inclusive o corpo da mulher. O discurso encontra uma realidade não muito nova, já que quando as mulheres se libertam totalmente das amarras sociais (e numa sociedade patriarcal, inclui-se a sexualidade) emergem enunciados, proferidos por homens, que os mostram ameaçados diante dessa mulher e, por conta disso, passam a ofendê-las, desqualificá-las, xingá-las, agredindo-as fisicamente, podendo o gesto culminar com a morte. Tal recorrência enunciativa contribui para a reificação da assimetria dos gêneros e para uma reeducação dos gêneros pautados em velhos esquemas sexistas. Quando os enunciados dos homens registram a desqualificação das mulheres, é quando elas exercem mais controle sobre seus corpos e poder sobre eles, só que os desdobramentos podem ser danosos à mulher porque o sistema ainda é patriarcal e não vê punidade ou meio de coibição para a violência masculina, tornando aceitáveis letras que violentam as mulheres, abrindo, com esta permissividade, para outras aceitações tão violentas quanto. O caráter subversivo através da sexualidade não parece acontecer, pois o fato de falar abertamente sobre algo não significa necessariamente uma postura subversiva em relação ao código social, pois a ciência e a religião sempre falaram sobre sexualidade, mas para torná-lo o mais silencioso possível. Essa liberdade no contexto atual é falsa, já que é pautada em antigos discursos binários de controle sexual das mulheres. Além disso, o contexto histórico e social não pode ser desconsiderado em uma análise, pois o popular está em contato com outros  registros, com a tecnologia, a história, os disursos, enfim, com tudo que a globalização oferece, incluindo os discursos estereotipados e preconceituosos.  

O conflito no discurso enunciado pelos homens ocorre ao trazer a "piriguete" como a mulher desejada, que o faz se sentir mais viril, mais macho, e ao apresentá-la como sendo a razão do seu infortúnio, já que ela também pode significar a sua derrota, seja através de uma negativa inicial, imediata, como não querer dançar com ele ou sair para ir ao cinema, seja através de sua performance, não ter boa "pegada", não beijar bem, não ter bom papo e não atender as expectativas durante o prazer sexual. Ao perceber que não consegue controlar uma mulher que sabe o que quer e que esse querer não o inclui, a sua raiva é extravasada porque afeta o que ele internalizou e que caracteriza, neste modelo de sociedade, um homem vitorioso, daí a desqualificação imediata à mulher. A sociedade patriarcal que confere poderes plenos aos homens, lhes concede também as razões para o seu fracasso, em outras palavras, o aspecto que pode elevá-lo, pode também destruí-lo. O seu comportamento nada mais é do que o produto de um sistema que o sabota.


Para mudar esse quadro, precisamos ter consciência de como a sociedade cria expectativas de gênero, cabendo às mulheres e aos homens corresponderem a elas ou não. E mais: perceberem que as performances são móveis, situacionais. O grande problema, a meu ver, é que o discurso hegemônico focaliza um aspecto central da cultura patriarcal que é o poder do macho em todas as suas dimensões sociais e a sexual é uma delas porque, paradoxalmente, nela reside a sua fragilidade. Nesse jogo de mascaramentos, expressos por um ódio perverso, esconde-se um sistema opressor para homens e mulheres, muito mais para elas que são desonradas, agredidas, humilhadas e muitas vezes mortas.

Bem, para mostrar que pode-se fazer pagodes  com letras criativas que promovam a cultura baiana, sem desqualificar os sujeitos que nela habitam, cito a música Açaí Granola, do grupo Sam Hop. Segue a letra:

Açaí Granola
Sam Hop


Açaí granola, curió gaiola, gravata gola,
limão sacola, chuteira bola,
Dona Isabella vendeu panela pra Dona Estela,
Seu Agenor que é machucador. (2x)


Tem, tem, tem colar de Gandhi, Gandhi, Gandhi,
chapa de flande, flande, flande e alho macho. (2x)


O velho mascando jiló, corante de canela em pó,
cachaça de alambique, topic pra Paripe. (2x)
E de repente um som, SAM HOP,
rolava o ti ti ti, o brother do cafezinho gritava assim: (2x)


E êta diaxo e vem pra debaixo,
Êta diaxo e vem. (2x)
Música na feira, música na feira. (2x) 

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Eleições, mídia e aborto

Por que será que exatamente neste momento o aborto passou a ser o ponto central e determinante que qualificará ou não o futuro presidente da República?

As mulheres sempre se preocuparam com este assunto, sejam elas feministas ou não. A diferença é que as feministas percebem que as recusas em se discutir o assunto não ajudam a melhorar a situação das mulheres que vão continuar a abortar ou, pior, gerar filhos para serem colocados na lata de lixo - na melhor das hipóteses - ou mesmo matá-los.

De repente, quando uma mulher está disputando o poder, eis que surge o aborto para direcionar os eleitores e eleitoras e,quiçá, alterar o quadro das eleições, favoráveis até o momento à candidata Dilma. Como os votos a serem disputados são de Marina que teve o apoio de quase 20% do eleitorado, cristãos e ambientalistas, tem-se a ideia de que esse público não migrará para Dilma (sim, porque o alvo é Dilma). Ora, se os cristãos são contra o aborto, as cristãs não podem ser a favor da criminalização das mulheres pelo fato de terem de decidir sozinhas que destino dar a sua vida,  já que nessas horas o Estado se omite e o parceiro a abandona. Acima de tudo o problema maior hoje é depositar todo o crédito â mulher do seu infortúnio como se o embrião fosse fruto de geração espontânea ou obra do espírito santo. Ninguém fala em responsabilizar o genitor ou o Estado que não cria mecanismos regulatórios que coibam a propaganda que incita as meninas e os meninos a fazerem sexo irresponsavelmente. Por que não se faz filme, telenovela, romances, histórias em quadrinhos que focalizem homens e mulheres se respeitando mutuamente? Por que na hora que o problema aparece a responsabilidade recai EXCLUSIVAMENTE na mulher? E a família que incentiva as práticas sexistas em casa? Ela não tem a sua parcela de responsabilidade? No dia em que se ajustar isso e de fato a legislação passe a funcionar de forma justa erradicando as imagens erotizadas de meninos e meninas, adolescentes e jovens certamente o aborto terá outro tratamento. Quem é reponsável pela publicidade veiculada pelas empresas de turismo que prostitui as meninas e meninos?

O aborto é uma ponta do iceberg. Debaixo dessa ponta existe uma base patriarcal que sustenta o cinismo e a hipocrisia social. E ainda tem gente - ilustrada de canudo na mão - que ainda diz que não existe patriarcado. Diante dessa reação, só posso explicar tamanho reacionarismo acadêmico através do conceito de "backlash", de um refluxo no qual as feministas - teóricas ou militantes - por se posicionarem publicamente denunciando as estruturas opressoras contra a mulher são rechaçadas publicamente, questionadas sobre a validade de sua abordagem teórica ou luta. Só muita misoginia pode dar conta de explicar a razão pela qual acadêmicos ou não (está tudo nivelado, a misoginia não tem fronteiras) reagem de forma agressiva e contundente sobre a necessidade de se estudar a condição da mulher hoje.

domingo, 25 de julho de 2010

GÊNERO E DESIGN

Li há pouco tempo um livro sobre linguagem e design intitulado A LINGUAGEM DAS COISAS, de Deyan Sudjic, no qual o autor mostrava como os profissionais dessa área desenhavam os móveis e objetos em geral pensando nos valores já sedimentados na cultura. Em um dos momentos do livro, o autor menciona como os objetos eram projetados de acordo com o que se convencionou chamar de masculino e feminino. Se pensarmos bem, podemos verificar no nosso entorno, nos espaços que transitamos cotidianamente e nos textos com osquais interagimos o quão gendrados são os objetos. Tomemos como exemplo os perfumes, os desenhos e as fagrâncias . Em geral, atribue-se os cheiros mais adocicados às mulheres e os amadeirados e cítricos ao homens. Com automóveis acontece o mesmo: os carros angulares e maiores são vistos como masculinos enquanto que os menores e arrendodados são vistos como femininos. Apesar disto, a recepção pode ser diferente, escapando às expectaivas e intencionalidades do sujeito que produz. Lembro-me da época que o ford Ka foi lançado, modelo 2003. A propaganda do carro trazia mulheres como público destino e as modelos que posavam não eram aquelas que costumávamos ver nas outras propagandas, como objeto de desejo masculino, assim como era um carro. As mulheres apareciam em uma postura ativa e isso era materializado nos elementos semióticos e verbais. Atitudes corporais - braços, pernas, olhar - buscavam passar a idéia de que aquela mulher estaria no carona, mas iria comprá-lo, dirigi-lo. A beleza do carro era destacado.

Em uma das propagandas um carro de cor preta aparecia próximo a uma modelo também vestida de preto com a seguinte enunciado: “black is beautiful”. Em suma, em se tratando de um produto para mulheres não caberia enfatizar detalhes técnicos, o que certamente estaria estampado no texto publicitário se o veículo fosse projetado para um público masculino. Acontece que o ford ka passou a ser consumido pelo público masculino também já que mesmo sendo um carro com motor 1.0, era leve o que  possibilitava um bom desenvolvimento nas pistas, principalmente em ladeiras, pensando em um aspecto específico de Salvador. Resultado: os homens passaram a ver o ford ka como um carro arrojado, forte, veloz e barato. As mulheres continuaram a apostar no ford ka, mas não sabemos se pela beleza, pelo desenvolvimento ou por ser compacto. O interessante é que o efeito na recepção é imprevisível, mesmo com todas as estratégias de venda, principalmente os textos propagandísticos. Um outro elemento importante é que os produtores pensam, racionalizam a partir dos estereótipos de gênero, buscando por referências já internalizadas pela audiência a fim de facilitar a adesão e aceitação.

Um outro exemplo muito interessante que pode ilustrar o debate de gênero enquanto arcabouço teórico diz respeito a uma peça publicitária de uma loja de móveis para escritórios. O nome da loja é Maxi Móveis e o propósito do texto é informar, divulgar a liquidação de móveis para escritórios. O que me chamou a atenção foi a imagem localizada no lado esquerdo do texto: duas cadeiras uma na cor azul e a outra na cor rosa. Na azul estava escrito “conforto” e na azul “beleza”. Temos conhecimento que os produtores trabalharam com referências simbólicas já existentes – azul/homem e rosa/mulher e para completar ratifica o imaginário de que as mulheres estariam interessadas na beleza e os homens no conforto. Tendo em vista que uma cadeira é para ser usada no escritório e que precisa estar em condições para suportar o corpo para que ele possa trabalhar melhor, caberia pensar se o conforto não seria mais importante para o desenvolvimento de uma tarefa profissional do que a beleza ou ainda, para sair do binarismo, se ambos não seriam importantes para o desenvolvimento do trabalho. Poderíamos ainda perguntar o motivo pelo qual esta blogueira elegeu o conforto como principal item e porque este item estaria vinculado ao homem, simbolizado pela cor azul, passando assim a valorizar os elementos que estariam associados ao seu sexo.

De qualquer sorte, valeria acompanhar como as linhas e formas também dizem coisas sobre o seu conteúdo, sobre a ideologia de um grupo.

sábado, 26 de junho de 2010

JORNALISMO NA COPA 2010

O programa do canal Sport TV, Tá na área África, exibido no dia 26 de junho, às 10h, trouxe para o seu programa três crianças com aproximadamente 12 anos de idade. Infelizmente não acompanhei o programa desde o início.

Das três crianças, apenas uma era menina, provavelmente para evitar acusações de sexismo. Afinal de contas, na terra de Marta, excluir uma mulher do comentário de futebol seria suicídio. Porém a menina que foi selecionada para o programa não entendia muito de futebol e tenho absoluta certeza que existem meninas mais articuladas que poderiam falar um pouco melhor. Até mesmo a que estava lá, se a ela fosse permitida a liberdade de falar, com linguagem própria, talvez pudesse produzir um outro efeito. Porém não foi possível verificar o seu potencial, dado o artificialismo que era o ambiente.

Os meninos também não estavam à vontade, pronunciavam frases curtíssimas, e um deles reproduzia os clichês e gestos dos comentaristas esportivos adultos, mas sem qualquer conteúdo. Talvez se deixassem essas crianças falarem espontaneamente, a idéia funcionasse melhor.

O quadro era desolador. Para piorar, o apresentador informava que o destino da copa estava nas mãos deles, pois tinham que rolar os dados que informariam o placar dos jogos. Ao invés de consultar as crianças livremente a fim de que pudessem justificar o seu escore, deixou à sorte o resultado dos jogos e ainda responsabilizou-as por isso.

Uma pena.

Nos cinco minutos que eu assisti quase não se ouviam as crianças. A idéia de construir o programa com crianças, isto é, apenas exibindo-as, pareceu sobrepor-se a idéia de permitir que fossem sujeito de suas ações.

domingo, 2 de maio de 2010

O ESPARTILHO ESTÁ DE VOLTA?

poucos dias assisti na Rede Globo de Televisão uma matéria sobre o espartilho e o corseletes, peças do vestuário feminino que tiveram seu auge na Era Vitoriana. Como sabemos, este período foi marcado por um extremo rigor dos códigos de conduta e pelo rigor com que homens e mulheres viviam a moral chamada vitoriana, porque sob os aupícios da Rainha Vitória. A moral vitoriana consistia em um alto grau de disciplina e controle dos corpos, de uma extenuante racionalidade, em que o comedimento dos gestos e das emoções eram vistos como valores nobres. Tudo isso aconteceu na Inglaterra do século XIX, embora a ideologia tenha atravessado as fronteiras inglesas.

Não é a primeira vez que tentam ressuscitar o espartilho sob o argumento de tornar as mulheres mais "femininas" e, por isso, mais bonitas e desejáveis. As mulheres contemporâneas estão sendo levadas a consumir um produto que promete ser uma versão "democrática" e menos dolorosa da "cintura de vespa" que projeta seios e nádegas, ambos símbolos do erotismo masculino. É sob a égide do discurso da beleza, do glamour e da democracia que a midia tenta revitalizar uma peça que, em algumas versões, impedia a mulher de se sentar.

O interessante nisso tudo é a recepção. As opiniões se dividem, mostrando que não há consenso e que a visão de passividade do espectador não se sustenta. Se a recepção é importante, os locais de produção não são menos, como assinala Teun Van Dick, analista do discurso. Sendo assim, a tentativa de revitalizar o espartilho pode ser visto como uma forma de relocar a mulher em um limite não apenas físico, mas psíquico, ajustando o seu corpo a uma bandagem e a sua mente a um código de comportamento, responsável pelo redesenhamento do corpo feminino pelo olhar masculino e, por estensão, o redesenhamento da mulher na sociedade. Na Era Vitoriana, havia a compressão do corpo como um todo. A moda era a inscrição simbólica das regras sociais, uma extensão do sentido que a sociedade ideologicamente esperava da mulher. Hoje, não menos diferente, a moda nos informa como funcionam as estratégias de encarceramento das mulheres aos padrões morais e de moda, associando o seu opressor à beleza, a sofisticação, ao desejo. Essa relação sadomasoquista implantada nos discursos contemporâneos produz o que eu considero ser um falso empoderamento das mulheres (na verdade, desempoderamento), mas que não é percebido devido ao alto grau de encantamento, de manipulação, de ignorância, de falta de perspectiva, de novos modelos e despolitização das mulheres. Além de tudo isso, o desencantamento geral com as utopias fizeram com que as mulheres apenas se ajustassem ao que está posto, embora possamos entrever vozes dissonantes nesse processo. É inegável  que a linguagem midiática exerce grande influência na formação de opinião porque utiliza os recursos necessários para a formação de um público aderente, mas compete à crítica feminista desenvolver dispositivos interpretativos para analisar os discursos.  

Segue abaixo o vídeo exibido pelo telejornal Hoje. Observe como o discurso é construído.




quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A INVENÇÃO DO FEMININO


Keira Knightley tem atuado no cinema em vários e diferentes papéis. O cartaz acima refere-se ao filme Rei Arthur (King Arthur, 2004) no qual fez o papel de Guinevere, parceira de Arthur e Lancelot. A imagem traz dois cartazes de divulgação da atriz, mas há algumas diferenças entre eles. Uma delas,  a que eu quero chamar a atenção, diz respeito ao aumento dos seios da atriz, o que não vemos no filme A Duquesa (The Duchess, 2008), quando a atriz não permitiu que manipulassem no computador o volume dos seus seios, vejam abaixo:


A atriz aparece nesse filme com seus seios naturais, pelo menos quanto ao volume, apesar do vestido moldá-los e destacá-los. Nesse sentido, chamo a atenção para o papel da publicidade no cinema que ajuda a fortalecer um código de feminilidade pautado na fetichização do corpo da mulher, nesse caso os seios.

SEU DESEJO É REALIDADE

Estava na concessionária navegando na internet e, de costas para o televisor ligado, ouvia o programa de Ana Maria Braga. É interessante como a gente capta muito mais a ideologia quando não está atraída pela imagem, esse feitiço. Ouvi uma voz ao fundo anunciando "seu desejo é realidade". Não pude deixar passar, embora estivesse concentrada no que fazia no computador. Pensei comigo mesma que esse enunciado parecia sintetizar todo o ethos da televisão: fazer com que o telespectador acredite que o seu desejo tenha se tornado realidade. Impressionante a força que tem esse enunciado, pois se no mundo real os desejos estão cada vez mais frustrados devido a impossibilidade de realizá-los, desejo esse alimentado pela própria mídia, ao não satisfazê-lo recorre a própria mídia para obtê-lo. O problema é que ela não satisfaz, mas cria o efeito de satisfação, ainda que momentânea, aliás tem de ser para que o telespectador retorne para a TV. Eu não me lembro o contexto, mas essa frase tem sido reproduzida de maneiras diferentes, mas com o mesmo sentido de promessa. O fato de não conseguir saciar esse desejo é que nos leva a pensar que a promessa não é cumprida, mas ilusoriamente ela é oferece sensações de saciedade.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

NATURALIZAÇÃO DOS PAPÉIS NA MÍDIA


A ideologia é materializada na palavra "toda" que sugere uma "universalização" da maternidade, endossada na expressão "nasce mãe" que remete a maternidade como algo natural ("naturalização") e inerente à mulher. Tudo isso associado a um gesto valorizado pela sociedade, de "homenagear", "ter cuidado", retratado na forma da menina segurar a boneca. O fato da menina ser negra e a boneca branca mostra a ênfase na maternidade como algo natural, sem marcas particulares, independente se é uma boneca e de outra cor. O destaque está na ideologia conservadora do "instinto natural".

Outdoor situado no bairro do Itaigara (Salvador-BA)