sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O PENTE: METÁFORA DA MODERNIDADE: Uma leitura sob o viés de gênero e raça

A nossa memória cultural está repleta de narrativas que evocam  simbologias e sentidos, muitas vezes tendo um simples objeto como texto.

O pente é um desses utensílios de grande simbologia, portanto crivado de valor, de ideologia de classe.  O pente, um antigo artefato cultural vinculado a aparência, à sedução, é em diferentes culturas e épocas associado à mulher. À guisa de ilustração, na literatura oral brasileira, Iara Mãe-D'água é vista no rio penteando os cabelos com um pente de ouro. Já em Portugal, as mouras encantadas exerciam o seu poder de sedução através de uma imagem emblemática, penteando-se à beira do rio também com um pente de ouro, aqui visivelmente versões de uma mesma lenda.

Na modernidade, outros significados - igualmente mitificados - sobre esse objeto foram sendo adicionados, já que o cabelo sempre foi um elemento muito marcante na identificação de um grupo social. Quem não se lembra das perucas brancas francesas usadas pela monarquia? Ou dos penteados das mulheres vitorianas? Ou ainda do estilo black power dos anos 70? O cabelo era (é) uma linguagem não-verbal que dizia (diz) muito sobre a classe social, a etnia, gênero, idade, entre outros.

O pente, na visão moderna, é retextualizado para dar conta da ideologia da classe burguesa, ao promover os hábitos citadinos e uma estética que projetasse os ideais desta classe representada na figura dos cabelos desembaraçados, mas, também “arrumados”, esticados, lisos. Nas canções populares no Brasil, as quais apresento mais adiante, o pente é destacado referindo-se à mulher negra,  envernizado por um discurso de beleza que funciona como ferramenta ideológica de um discurso hegemônico, articulando o seu uso à civilidade, leia-se um conjunto de regras sociais e de comportamento que proporcionava uma sensação de pertencimento a um grupo social de prestígio, daí a valorização deste objeto na veiculação de uma estética construída pelo discurso hegemônico. Assim, o pente aparece como elemento disciplinador, homogeneizador, que tenta criar um padrão de beleza, instituindo como valor e prestígio o cabelo liso ou liso-ondulado.
No homem, a estética da modernidade em relação ao cabelo é representado pelo corte e pela ausência de barba e bigode, este com mais adesão entre os jovens solteiros do que entre os mais velhos e casados. De qualquer sorte, a barba e o bigode deveriam estar aparados, mas mantidos devido ao traço distintivo de masculinidade e de mudança de um status social. O cuidado com bigode e barba eram exigidos distinguindo o homem civilizado do “bárbaro” representado como cabeludo. O cabelo curto, nos homens, passou a ser um traço de civilidade, de modernidade, de classe social. Em relação à mulher, o corte, anos depois, foi uma explosão comportamental, já que era visto como símbolo do homem. A imagem da mulher moderna com cabelos curtos sofre resistência cultural porque os cabelos longos e lisos são valorizados como marcas de feminilidade, de sedução, de virgindade, haja vista as lendas das mulheres que seduziam os homens através do gesto de pentear seus longos cabelos. Em termos de textura, o cabelo da índia e da branca tem em comum serem lisos, correspondendo assim ao imaginário de sedução construído pelo ocidente atrelado ao cabelo liso. Já em relação à mulher negra, essa imagem não consegue ser justaposta a menos que houvesse um meio que a fizesse se aproximar do padrão de beleza europeu. O pensamento da modernidade é estruturado com base em um discurso hegemônico que tende a apagar a diferença por meio do discurso da igualdade, sendo que o paradigma estético é determinado a partir de uma estética particular, neste caso branca. Em relação ao cabelo liso e longo, essa imagem passa por um processo de valorização e afirmação, contrapondo-se ao cabelo curto e crespo. Ainda hoje, a imagem de feminilidade perpassa por esta estética, vide as propagandas de xampus que espetacularizam esse modelo de beleza feminina. A beleza feminina, escrita com o artigo definido feminino, corresponde a uma beleza em particular que se pretende universal. Por esse processo de universalização, o discurso hegemônico buscou pautar-se e se fortalecer escamoteando a sua ideologia de classe.

Mário Varela Gomes, em estudo sobre a iconografia na Europa, fala da presença do pente nos sepulcros femininos, além do espelho e da espada. O pente, segundo o estudioso, foi um objeto de adorno entre os egípcios e gregos e, embora não tenha encontrado no Google um artigo mais relacionado a um viés de gênero e etnia, posso dizer que, apesar do pente ser uma invenção antiga, o seu uso na modernidade, em um país colonizado como o nosso, precisa ser relacionado às circunstâncias de uso.

Assim, o pente na modernidade passa por um processo de ressignificação e, considerando o propósito da classe dominante de branqueamento, pentear o cabelo ou alisá-lo consiste em um ato de tornar o outro o mesmo. A partir de um discurso de igualdade, de inclusão, exclui-se o diferente, a outra cultura, os outros traços. A igualdade, a civilidade e o desenvolvimento carregam em seu sentido histórico uma ideologia de classe que circula não apenas nas esferas políticas e econômicas, mas na cotidianidade, nas relações e nos comportamentos, até porque essas esferas não existem separadas umas das outras, mas imbricadas. O projeto de modernização consistia em adequar todos os membros da sociedade, sob todos os aspectos, às normas de onde partia o sentido de civilidade e fazer com que os outros países entrassem numa esquizofrênica busca pela identificação com quem tinha o lugar de prestígio social, tendo como paradigma os valores estéticos de visão etnocêntrica, basicamente produzidos na França e Inglaterra nos séculos XIX e início do XX, com o apoio das revistas femininas que eram inicialmente publicadas para as mulheres da elite brasileira, mas que no decorrer dos anos foram sendo direcionadas para as camadas mais populares em nome de um projeto de radical transformação social e cultural.

Nesse processo de modernização, as mulheres são educadas para atenderem ao projeto burguês. As mulheres modernas eram aquelas que aceitavam e faziam parte das regras sociais que a cultura hegemônica estabelecia, elegendo os valores de classe como os valores que proporcionavam aceitação, sentido de pertencimento, felicidade, alegria e realização, independente de as mulheres serem brancas ou não. Elas serão disciplinadas a seguirem um padrão de comportamento e de beleza que, sem dúvida, para a mulher negra provocará efeitos conflitantes entre a imagem que elas têm e o que é valorizado pela cultura que se pretende hegemônica.

Na música popular brasileira, o pente, quando se refere à mulher negra, não tem um sentido de adorno, mas de obstáculo, de conflito. Ele aparece como objeto de distinção e aculturação: "nega do cabelo duro que não gosta de pentear" (Fricote, de Luiz Caldas/Paulinho Camafeu, 1984), "Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?" (Nega do cabelo duro, de David Nasser/Rubens Soares, 1942). Nos primeiros versos da música Fricote, uma voz do texto, o homem negro e da classe popular, constata uma particularização, que chama a sua atenção, expressa na estética de uma mulher negra que, na sua visão, "não gosta de pentear" os cabelos. O verbo gostar em sua origem latina significa saborear, sentir prazer, achar bom gosto e que no sentido figurado corresponde a uma experiência afetiva, de amizade, ou seja, perpassa por uma aproximação e identificação. Se gostar evoca esses sentidos, podemos dizer que a mulher negra não penteia os cabelos porque, obviamente dói, e a dor é uma experiência sensorial desagradável (mas que pode ser sentida também devido a uma violência simbólica). A dor, a menos que o sujeito seja masoquista, não é agradável e por isso impede a identificação, a confluência, o prazer. O pente, como nós conhecemos, objeto dentado usado por mulheres cujos cabelos são lisos, é objeto de violência, de dor, de agressão para as mulheres de cabelos crespos. As mulheres negras traduzem a sua resistência à cultura hegemônica branca resistindo ao uso de seus objetos e que na música é mostrada através de um “não gostar”, assumindo uma outra estética e minando uma tentativa de univocidade cultural, um único registro de padrão estético.

No entanto, a letra da música traz enunciados que desqualificam esta mulher que não quer alisar os cabelos, ordená-los, pelo fato de ser mulher, levando-a a se deparar com duas resistências: a étnico-racial e a de sexo e gênero. Além de ter que sustentar a sua auto-estima no que se refere aos seus traços étnico-raciais, a mulher que passa pela rua precisa ainda defender-se do sexismo cotidiano, pelo simples fato de estar exposta ao outro que se vê no direito de molestá-la. A rua é um território marcado pelo homem como constituinte de sua identidade, que não só pretende dominar o espaço, como também o que nele passa.

Em um dos versos da música, quando é cantada, aparece a palavra "olha" (Olha a nêga do cabelo duro). A presença quase imperceptível dessa palavra ressalta não apenas um sujeito que  apreende o objeto em seu campo visual, mas que também aponta para outros, reforçando a sua autoridade e, também, a cumplicidade de gênero. Ao se referir à mulher que passa, o eu-masculino não apenas convoca os outros homens que formam o coro na música, mas aos que estão ouvindo a música, ampliando o seu círculo de significação compartilhada de gênero. A referência ao cabelo duro "que não gosta de pentear" é uma atualização do discurso hegemônico que, a meu ver, não subverte o status da mulher negra e pobre, inclusive por se apropriar de um adjetivo pejorativo "duro" usado em oposição ao liso pela cultura hegemônica, no lugar de crespo. A mulher negra é apontada na rua pelo fato de ser mulher e não pentear os cabelos, fato que, para o olhar do homem, a torna acessível. Além do preconceito étnico-racial e de gênero, o fato de morar na Baixa do Tubo, bairro da periferia de Salvador, acrescenta à mulher um outro componente identitário ao qual precisa também superar, já que a desqualificação se dá na composição da tríade identitária - raça/etnia, gênero/sexo e classe social. 

Do ponto de vista de gênero, a posição da mulher é a de objeto fetichizado porque é o homem que olha a mulher como objeto de desejo e a maneira de ele encontrar o sentido disso é recorrendo ao que a sociedade estabeleceu como sendo atributos do homem, como por exemplo, colocar o outro dentro do seu campo de visão, que ao longo do texto se materializa por meio de uma linguagem que se impõe como poder em relação à mulher, na expressão "pega ela aí”, enunciada em um espaço público - estabelecido como sendo masculino - por meio do coro de homens – acentuando a violência já que reforçada pela referência quantitativa. A mulher que passa na rua para ser diminuída e dominada precisa ser atacada de todas as formas, no que é mais precioso no ser humano: a sua identidade. Na música, entrecruzam-se pelo menos três expressões identitárias: a de gênero, a étnica-racial e a de classe:


Pega ela aí!
Pra quê!
Pra passar batom
A masculinidade se forma a partir da relação de poder com o outro - a feminilidade - que se instituiu em nossa sociedade de forma paradigmática por meio de forte representação etnocêntrica e androcêntrica. Que modelo de feminino esse homem internalizou? Por que passar nessa mulher batom? Que possíveis sentidos envolvem a palavra batom? Por que pentear os seus cabelos? Ao se dirigir à mulher negra quando a sua masculinidade está ameaçada pelo desempoderamento, sobretudo econômico, o homem negro da periferia precisa afirmar o seu poder via a identidade de gênero, da masculinidade, mas que acaba afetando a mulher como um todo, isto é, enquanto a sua igual sob o aspecto de raça e de classe. Estas marcas são desconsideradas porque o que os distinguem é o sexo, o gênero, por meio do qual o homem negro e da classe popular tentará impor o seu poder. A expressão "pega ela aí" sugere força, é um enunciado injuntivo, imperativo (pega = pegue), que contém autoridade e impositividade. Que autoridade é essa?

5 comentários:

  1. belíssimo texto!!! é de sua autoria?

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  2. Sim, só escrevo textos de minha autoria. Os que forem citados, recebem os créditos devidos.
    Obrigada pela postagem.

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  3. o texto é com certeza bem interessante, mas tenho uma ressalva. a parte em que você cita "não achei no google" desqualifica o teu argumento, afinal existem outras fontes mais fidedignas que o google que tu poderias ter consultado.

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  4. Olá, Fernanda
    O google é uma ferramenta de busca na qual encontramos as fontes fidedignas para consultas, como artigos científicos produzidos por pesquisadores. As revistas vinculadas às universidades, artigos apresentados em eventos científicos, entre outros, se quiserem ser lidos e conhecidos, devem hoje estar na rede. Caso contrário, não chegam amplamente aos seus leitores. As bibliotecas e livrarias também são espaços de circulação destes textos, mas não têm a mesma atualização, rapidez e acervo que as ferramentas de busca disponibilizam. Existem Revistas, como a Scielo, que publicam artigos frutos de pesquisa muito interessantes, assim como várias outras do mesmo quilate. O Google em si é apenas um espaço de busca. Obrigada pelo comentário. Da próxima farei uma ressalva. Muitas pessoas ainda olham com desconfiança para o Google, mas ele é apenas um lugar de pesquisa, um poderoso espaço, diria. Um abraço.

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