quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Pagode ou a Derrota das Mulheres – Parte II

“O intelectual encontra-se sempre entre a solidão e o alinhamento”
(Edward Said)

Já escrevi uma vez sobre algumas músicas de pagode que desqualificam a mulher e depois do PL da deputada Luiza Maia (PT) sinto-me mais uma vez provocada a participar do debate.

Tenho escutado e lido a respeito e os argumentos são antigos, velhos conhecidos nossos. Vejamos alguns. Um deles diz respeito a ferir a liberdade de expressão ao instituir a censura, mas a democracia não significa ausência de regras, e a liberdade, o seu sustentáculo, garante o direito ao outro de escolher, o que não acontece em nossa sociedade, uma vez que as mulheres pobres e negras da sociedade são apenas valorizadas pelos seus atributos físicos e mais nada. Onde está a escolha? Não é preciso dizer como anda a educação pública em termos de valorização do potencial intelectual e de conscientização dessas mulheres, o que me faz desconfiar de um livre consentimento delas. Noam Chomsky em seu livro “O Lucro ou as Pessoas” fala de um consentimento sem consentimento, ao defender a ideia de que as pessoas consentem porque são agraciadas, corrompidas, aliciadas, seduzidas à prática, o que isenta o agressor de qualquer violência (o crítico norte-americano faz referência à mídia principalmente). E é exatamente neste ponto que reside a manobra mais astuta e a face mais cruel da nossa sociedade porque a sedução não agride, ela é suave, vem acompanhada de palavras carinhosas, afetuosas, e vem de um sujeito não tão distante, mas de homens tão pobres e negros quanto as mulheres que se lançam nas pistas de dança para viverem alguns minutos de prazer (já que não existe outro espaço e momento que possa equiparar em  intensidade e frequência). O consumo e o afã de enriquecer desconhecem qualquer laço de solidariedade. É a face extrema do individualismo.

Outro ponto argumentativo dos que defendem este discurso verborrágico misógino é de que tudo é em nome da brincadeira, como se isso não fosse uma estratégia para alcançar o gosto das meninas e adolescentes, confundindo-as, tratando-as infantilmente, a fim de transformá-las em parque de diversões dos meninos que se divirtem às suas custas. Há quem diga ainda que as meninas não são tão inocentes, mas ponho em dúvida se o excesso de exibicionismo do corpo significa controle ou falta deste, na medida em que a indústria cultural e de entretenimento é expert em transformar os gestos espontâneos da cultura em negócios, que são devolvidos para o povo de forma distorcida. Daí a confusão que causa nas pessoas já que uma parte desta devolução contém elementos que fazem parte da identidade cultural, mas a outra banda podre explora, prostitui e suga toda a beleza e encanto que o gesto popular pode ter, mas que as pessoas não percebem diante da manobra de assimilação. Além disso, o discurso é veiculado por jovens, geralmente oriundos do mesmo estrato social, por isso mais convincente, além de ser revestido de expressões e tons de grande apelo afetivo.

Outro aspecto relevante é que qualquer pessoa que se posicione contra o pagode está perseguindo o povo negro e pobre. Isso é um jogo retórico conhecido, já que opera com a inversão, no sentido de neutralizar o discurso do outro através da universalização. É sabido que o ritmo é contagiante, o que facilita a absorção das letras misóginas, mas sabemos também nem toda música de pagode tem uma letra depreciativa, a exemplo de Açaí Granola, do Sam Hop, Liberar Geral, do Terra Samba, entre outras. Portanto, o discurso da perseguição ao povo negro e pobre não se sustenta. Outro ponto é que as mulheres brancas e ricas se renderam ao pagode. Na busca de desvincular o pagode de um gosto específico de pobres e negros, adota-se, mais uma vez, o argumento universalista, aludindo a raça e a classe. As brancas podem gostar e se identificar, até porque tem muita menina branca na periferia, mas ricas, só se for para exorcizar as suas repressões burguesas, encontrando um emplasto para liberarem as suas emoções contidas, mas depois voltam para o seu mundo.

Outro argumento foi em relação à musica de duplo sentido, como traço pertencente à música popular. Disso sabemos, mas o que existe em certas letras de pagode é uma grosseria, não há duplo sentido, já que a explicitação ocorre na coreografia e na letra da música. Onde está o duplo sentido? O povo sabe fazer isso com muita engenhosidade, criatividade, mas como o consumo exige uma produção em larga escala, o que era criatividade poética popular, tornou-se uma avalanche de combinações homonímicas pobres, repetitivas e estereotipadas.

É uma pena que uma música tão nossa tenha se tornado tão alijada de humanidade porque os lucros transformam meninos ambiciosos em baluartes e porta-vozes daqueles que pouco se incomodam com o que o povo pensa. E as meninas, transbordando vitalidade e vigor, desperdiçam as suas vidas e energia para alimentarem uma indústria que abarrota suas contas bancárias de sonhos cifrados. Sem melhores oportunidades, essas meninas se entregam a alguns instantes de prazer renovados a cada show e patrocinados pelas grandes marcas.

Outro ponto, mostrado por um programa de TV, destacou, pela sua edição, que haveria incoerência da deputada baiana ao ter manifestado o seu apreço pelo pagode, como se fosse uma contradição. O que foi muito tendencioso da emissora, já que a questão não é, a meu ver, uma cruzada contra o pagode, mas reconhecer que algumas letras são, de fato, depreciativas e nós, mulheres, pelo menos algumas de nós, não podemos assistir a tudo isso sem, pelo menos, mostrar a nossa visão, o contraponto. O que eu percebo é um silêncio cínico dos intelectuais em relação a determinadas discussões, principalmente quando se trata da cultura, como se tudo que fosse da cultura fizesse bem ou, pior, como se o intelectual não pudesse interferir no seu curso. É lamentável que alguns intelectuais cometam esse desserviço e apenas descrevam e não critiquem. O resultado disso é uma população acrítica graças a certos doutores que constatam a realidade, mas não a analisam, não a transformam.

Eu, particularmente, Said, prefiro a solidão.


“O que o intelectual deveria menos fazer é atuar para que seu público se sinta bem: o importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável”
(Edward Said)

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